Mário Ferreira

A Baixa de Lisboa, também conhecida como Baixa Pombalina, por ter sido reconstruída por ordem do Marquês de Pombal, na sequência do terramoto de 1755, é uma das zonas mais emblemáticas da cidade. Além de abrigar alguns dos monumentos mais conhecidos da capital, a Baixa Pombalina sempre ocupou um lugar central na vida comercial de Lisboa. Ao longo dos séculos, foram muitos os artífices que se estabeleceram na Baixa lisboeta, cujos nomes das ruas (Douradores, Correeiros ou Fanqueiros) denotam algumas das atividades comerciais que aqui se praticavam. Não é por acaso que existe uma Rua do Ouro ou uma Rua da Prata, assim denominadas desde o século XVIII, época em que os ofícios estavam arruados, isto é, reunidos por profissões numa mesma rua. Foi nesta zona da cidade que se instalaram muitas lojas de ourivesaria, joalharia e relojoaria. Se, em tempos, era fácil encontrar um mestre relojoeiro por estas bandas, hoje em dia, existem apenas dois em atividade. Um deles chama-se Mário Ferreira, relojoeiro há mais de 50 anos na Baixa de Lisboa.

Natural de Amiais de Cima, uma aldeia do concelho de Santarém, Mário Ferreira lembra-se de gostar de frequentar a barbearia do avô Brás, com quem aprendeu muita coisa. “Aos 8 anos, ensinou-me a ver as horas através de uma estaca espetada no chão. Aquilo fascinava-me!”, recorda, referindo-se à forma como variava o comprimento da sombra da estaca nas diferentes horas do dia. Dois anos depois, o avô ofereceu-lhe um relógio de sol e a curiosidade pelos aparelhos de medir o tempo começa a ganhar força. Aos 15 anos, rumou a Lisboa para aprender o ofício de eletricista numa oficina de automóveis. “Um dia, ao passar por uma ourivesaria, fiquei encostado à montra a ver um relojoeiro a trabalhar. A mulher dele, vendo-me ali parado a olhar, conheceu-me - eles eram da minha terra -, chamou-me e apresentou-me ao marido, que me perguntou se queria ir para lá aprender. Disse que sim, despedi-me da oficina e fui para lá”, conta Mário Ferreira sobre o início da sua carreira de relojoeiro. Passado pouco tempo, foi trabalhar para uma ourivesaria em Alcântara, onde teve o privilégio de aprender com “um homem extraordinário”, que se tornou um amigo para a vida.

Quando tinha 20 anos, Mário Ferreira foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório, tendo participado na Guerra Colonial, em Moçambique, durante 25 meses. Depois de regressar do Ultramar, trabalhou uns tempos numa ourivesaria em Campo de Ourique até que, aos 27 anos, agarrou a oportunidade de trabalhar na ourivesaria Rodrigues, Gonçalves e Neves, considerada uma das melhores casas do ramo na altura. Ao longo de 35 anos, Mário Ferreira foi relojoeiro desta ourivesaria na Rua dos Sapateiros, em plena Baixa Pombalina. Durante este período, realizou diversos cursos de aperfeiçoamento na Casa Pia de Lisboa, suportados pela Federação de Relojoaria Suíça, para se manter a par das inovações da indústria. Com o fecho da casa Rodrigues, Gonçalves e Neves, o relojoeiro optou por se reformar e, depois de 40 anos a trabalhar por conta de outrem, decidiu abrir a sua própria oficina de relojoaria na Rua dos Douradores, mesmo no centro da Baixa. “Tinha 62 anos quando me reformei. Mas ia para casa com essa idade? Ia para o café jogar às cartas e falar de futebol? Isso pode ter graça um dia ou dois, mas depois também cansa”, diz Mário Ferreira que, aos 78 anos, continua a trabalhar diariamente na sua oficina.

Com uma carreira que se estende por mais de seis décadas, o relojoeiro assistiu à evolução da relojoaria. Desde os relógios mecânicos, cuja precisão ainda deixava a desejar, passando pela revolução do quartzo, na década de 1970, até chegar aos dias de hoje, em que “se vende de tudo”, Mário Ferreira nunca deixou de reparar relógios. Pelas suas mãos passam muitas peças de colecionador, das principais marcas de alta relojoaria suíça, como a Audemars Piguet ou a Jaeger-LeCoultre, mas também relógios que já não se fabricam mais, como os relógios de diapasão ou os relógios de carruagem, que se usavam no século XIX. Entre as grandes inovações que revolucionaram a indústria ao longo da segunda metade do século XX, destaca-se a tecnologia do relógio de quartzo. Tal como fez com outras inovações, como o relógio eletromecânico, Mário Ferreira tirou vários cursos para saber mais sobre esta tecnologia, que levou a indústria relojoeira suíça a uma crise profunda. O primeiro relógio de quartzo foi colocado no mercado pela marca japonesa Seiko, em 1969, causando ondas de choque na indústria relojoeira suíça, que não estava preparada para o surgimento desta nova tecnologia. Embora prefira trabalhar com relógios mecânicos, que considera “mais interessantes”, o relojoeiro não esconde o fascínio pela tecnologia do relógio de quartzo. “Uma precisão fantástica. Digamos que o pior relógio de quartzo regulava melhor do que o melhor relógio mecânico daquela altura”, diz Mário Ferreira, referindo-se aos anos 70 do século passado. A indústria relojoeira suíça enfrentou a chamada crise do quartzo durante mais de uma década, tendo perdido o estatuto de maior fabricante de relógios do mundo, em volume de vendas, por essa altura. “Os suíços ficaram aflitos porque tinham muitas fábricas a depender dos relógios mecânicos. Mas não é que conseguiram dar a volta à situação? Para competir com os relógios de quartzo, tiveram que melhorar muito o orgão regulador dos relógios mecânicos. Atualmente, estão a fabricar destes relógios em quantidades enormes. Toda a gente quer ter um Rolex”, diz o relojoeiro, enquanto mostra uma montra de relógios de marcas de luxo, todas elas de origem suíça. Na opinião de Mário Ferreira, a marca suíça de relógios mais vendida no mundo está para a indústria relojoeira como a Mercedes está para a indústria automóvel. “Duram que se fartam. Mas há marcas que produzem carros melhores do que a Mercedes. Também há relógios melhores do que os Rolex. Como um Patek Philippe, um Boucheron, um Audemars Piguet...”, diz, enumerando algumas das principais marcas de relógios da Suíça. Mesmo que muitas marcas deste país tenham incorporado a tecnologia do relógio de quartzo, a indústria relojoeira suíça virou-se para o segmento de luxo, reiniciando a produção de relógios mecânicos, que quase havia sido abandonada. Em 2008, ressurgiu para se tornar o principal exportador mundial de relógios (em valor monetário), restabelecendo assim o seu domínio mundial. Mário Ferreira já reparou relógios de muitas proveniências, incluindo relógios de origem nacional, como os relógios da marca Reguladora, mas não tem dúvidas em afirmar que, “hoje em dia, quando se fala em comprar um bom relógio, tem que ser um relógio mecânico suíço”.

Ao contrário de outras artes e ofícios que deixaram de existir na Baixa Pombalina, a relojoaria ainda resiste ao passar do tempo. Num quarto andar da Rua dos Douradores, Mário Ferreira passa horas a fio a reparar e restaurar relógios de todos os tipos. Apesar de já não trabalhar em casa, como acontecia nos tempos em que era empregado por conta de outrem, o relojoeiro ainda se dedica diariamente à arte de consertar relógios. “Já estou a cortar nos trabalhos que faço”, diz Mário Ferreira que, cada vez mais, valoriza o seu tempo livre, seja para fazer um cruzeiro nas férias, andar de bicicleta ou passar fins de semana na terra onde nasceu. Enquanto relojoeiro, a única certeza é que os relógios que lhe passam pelas mãos vão continuar a ser tratados com a mesma precisão suíça a que habituou os seus clientes.

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