Etelvina Santos

O mobiliário pintado alentejano é uma forma de arte que se desenvolveu na maior região de Portugal a partir de meados do século XIX. São dessa época as primeiras menções escritas às cadeiras de Évora ou cadeiras alentejanas. Estas referências levam a crer que as primeiras peças de mobiliário pintado alentejano foram feitas em Évora e, posteriormente, este estilo de mobiliário foi adotado por artesãos de outras localidades do Alentejo. Além das cadeiras com assento em buinho, o mobiliário tipicamente alentejano revela-se na forma de arcas, camas, mesas, guarda-fatos, cómodas ou mesas de cabeceira. Pintados em tinta de esmalte com fundos azuis, brancos, verdes ou vermelhos, os móveis alentejanos são ornamentados com flores e traços distintivos. Ao longo do último século, as técnicas de pintura tradicional alentejana foram desenvolvidas por vários mestres desta arte, como é o caso do Mestre “Belizanda”, de Évora, ou do Mestre “Lita”, de Reguengos de Monsaraz. Atualmente, o mobiliário pintado do Alentejo continua a ser produzido por alguns artesãos que insistem em manter viva esta arte centenária. Etelvina Santos, artesã há 34 anos, é uma dessas pessoas.

Natural de Montemor-o-Novo, onde nasceu há 62 anos, Etelvina Santos sempre gostou de pintar e desenhar. “Quando era criança e me perguntavam o que queria ser quando fosse grande, dizia que queria ser professora de desenho”, conta Etelvina que, apesar da veia artística, esteve afastada do mundo das artes até aos 28 anos. “Fui empregada de escritório numa loja de eletrodomésticos durante vários anos. Um dia, apareceu lá um amigo, que fazia móveis alentejanos em miniatura para vender, só que não os pintava, e pediu-me para pintar os móveis. Ele sabia que eu tinha algum jeito e explicou como queria que eu fizesse”, lembra, confessando que “nunca tinha tomado muita atenção à pintura alentejana” até essa altura.

Depois de pintar os móveis para o amigo, Etelvina Santos percebeu que queria continuar a fazer arte. Decidiu abandonar o emprego e abrir uma loja de materiais de belas-artes e artes decorativas, que incluía uma pequena oficina. Foi nesse espaço que começou por fazer miniaturas de mobiliário e brinquedos, seguindo o conselho do amigo que reavivou o seu interesse pelas artes. Algum tempo depois, Etelvina Santos participou na sua primeira feira de artesanato, na Feira Internacional de Lisboa (FIL), onde conheceu Alfredo Silva, um dos mestres da pintura tradicional alentejana. “Ele gostou dos meus trabalhos e convidou-me a visitar o seu atelier para ver como ele pintava. Ensinou-me a fazer as tintas, a usar os materiais, assim como a técnica. A pintura alentejana tem uma técnica própria. Quem não sabe, não a usa bem. Ao vê-lo pintar, aprendi muito”, conta, reconhecendo a importância do Mestre Alfredo Silva no seu percurso artístico. Uns anos mais tarde, mudou a sua loja para a Rua Curvo Semedo, em Montemor-o-Novo, e mudou também a escala do mobiliário pintado alentejano, tendo passado a pintar, exclusivamente, móveis de tamanho normal. Em 2004, cerca de 15 anos depois de trocar o escritório pela oficina, Etelvina fundou, juntamente com quatro sócios, o Celeiro das Artes, uma cooperativa sedeada na sua loja. Segundo a presidente da direção, Etelvina Santos, a cooperativa “cumpre diversas funções, sendo centro de formação em artes decorativas e tradicionais, atelier de restauro de pintura de mobiliário, frescos e azulejaria, e também local de venda de artesanato e de material para belas-artes”. Uma das prioridades do Celeiro das Artes é a defesa e divulgação da pintura tradicional alentejana. Etelvina Santos reconhece que “não é fácil” desenvolver uma arte em vias de extinção. “Se vivesse só da pintura alentejana, já tinha acabado com o negócio há muito tempo”, diz a artesã, que também faz restauro de frescos e pintura mural, entre outros trabalhos artísticos.

O restauro de frescos entrou na sua vida em 2006, quando concorreu a uma bolsa de estudo concedida pelo Instituto Per L’arte e il Restauro - Palazzo Spinelli, em Florença. “Na altura, estava a tirar um curso de restauro de frescos no Instituto de Artes e Ofícios (IAO), em Lisboa. Quando soube da possibilidade de obter uma bolsa de estudo para estudantes estrangeiros em Florença, não hesitei em concorrer”, diz Etelvina Santos, não escondendo o orgulho de ter tirado um curso de restauro de frescos numa cidade que considera ser “o suprassumo do fresco”. Em 2012, tornou-se licenciada em Artes Visuais pela Universidade de Évora, sendo que teve a oportunidade de participar no programa Erasmus. No âmbito deste programa que visa incentivar o intercâmbio de estudantes do ensino superior, Etelvina Santos residiu durante alguns meses em Altea, um município da província de Alicante, em Espanha. “Foi uma experiência muito boa. Fiz coisas que gostei muito, como trabalhar o bronze”, diz, antes de contar uma experiência “muito gratificante” que viveu no âmbito do programa Erasmus. “Criei uma peça para homenagear o artesanato português. É um lenço dos namorados com 3 metros por 3 metros. Tem corações de Viana bordados com flores alentejanas. Levava o lenço para os lugares e as pessoas bordavam frases de namorados. Chegaram a estar doze pessoas a bordar o lenço ao mesmo tempo. É uma peça feita por muitas mãos, tem frases em português, italiano, norueguês, russo e espanhol. Chamei a esta intervenção ‘No Fio da Comunicação’, porque estávamos a bordar com o fio e a comunicar”, conta Etelvina, antes de acrescentar: “Acontece o mesmo com os tapetes de Arraiolos, quando as mulheres se juntam a bordar”. O lenço que homenageia o artesanato português encontra-se no Celeiro das Artes, não estando ainda terminado, uma vez que resta espaço para bordar mais algumas frases de namorados.

Mesmo com tantos interesses e aptidões, Etelvina Santos encontra sempre tempo para se dedicar ao mobiliário pintado alentejano. Ao contrário dos trabalhos de artes decorativas, em que a artesã se permite dar asas à imaginação, existem traços e elementos na pintura tradicional alentejana que são identitários. “Tenho uma filosofia em relação a esta arte que passa por tentar manter o mais possível a tradição”, diz Etelvina que, apesar de seguir as linhas dos antigos mestres, não gosta de as misturar na mesma peça. “Consigo reconhecer a origem da estética de pintura alentejana. A minha teoria sobre isso é que, antigamente, cada oficina tinha um mestre que ensinava os seus aprendizes da forma que achava ser correta. Isso criou linhagens de artesãos com estéticas muito definidas. Por isso, consigo reconhecer móveis de Ferreira do Alentejo, Estremoz, Reguengos de Monsaraz, Redondo, Évora...”, conta, antes de mostrar um pequeno livro, que chama de “herbário”, com elementos característicos da obra de vários mestres alentejanos. “Podem ver como as flores do Mestre ‘Belizanda’ são diferentes das flores do Mestre Margalha”, diz Etelvina Santos, que não esconde a preferência pela obra do Mestre Joaquim António dos Santos, o “Belizanda”, nascido em Évora, em 1890. “Para mim, o Mestre ‘Belizanda’ foi o maior entre os mestres”, afirma, mostrando uma peça com os elementos e cercaduras que caracterizam o trabalho deste mestre eborense. O respeito e admiração de Etelvina Santos pelos mestres da pintura tradicional alentejana revela-se não só nas reproduções que faz das suas obras, mas também nas notas de encomenda. “Quando o cliente escolhe uma pintura para os móveis, escrevo na nota de encomenda: pintura do Mestre ‘Belizanda, ou pintura do Mestre ‘Lita’, ou pintura do Mestre Alfredo Silva”, explica, enquanto pinta uma pétala de aloendro. “Sou uma copista”, diz Etelvina, soltando uma gargalhada. A artesã orgulha-se de copiar as obras dos mestres alentejanos, mas está recetiva a pedidos de peças menos tradicionais. “Se o cliente trouxer um móvel que não tem o pé afunilado ou o engradado, duas das características que distinguem este mobiliário, e quiser que seja pintado à alentejana, não há problema. Não é um móvel tipicamente alentejano, mas fica pintado com as flores alentejanas”, diz, admitindo que acaba por dar o seu cunho pessoal a cada peça.

Tendo participado inúmeras vezes em feiras de artesanato de norte a sul do país, como é o caso da Feira Nacional de Artesanato, em Vila do Conde, Etelvina Santos não tem dúvidas em afirmar que criou a sua carteira de clientes nessas feiras. “Os clientes ficaram a conhecer o meu trabalho e deram a conhecer a outras pessoas. Depois há os clientes ocasionais, que procuram onde se faz pintura tradicional alentejana e chegam até mim”, explica a artesã, que partilha, há muitos anos, o conhecimento que tem sobre esta arte. “Dei muitas formações através do Instituto de Emprego e Formação Profissional e agora dou aulas de pintura e artes decorativas aqui no Celeiro das Artes”, diz Etelvina, que também chegou a trabalhar como colaboradora da revista “Memória Alentejana”, sendo autora de textos sobre o mobiliário pintado alentejano e sobre os frescos e a cal. Um dos seus projetos para o futuro é escrever um livro sobre a pintura tradicional alentejana.

Com uma carreira de mais de três décadas, Etelvina Santos revela que um dos segredos para a longevidade é o brio com que trabalha. Formada em Artes Visuais e com um curso de restauro de frescos feito em Florença, Etelvina gosta de dizer que é “artesã com muito orgulho”. Quer seja artista plástica ou artesã, uma coisa é certa: o artesanato alentejano é mais rico com pessoas como Etelvina Santos.

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Rodrigo Sim Sim

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Rosa Cunha