Luís Murça

Situada na margem esquerda do rio Tejo, em frente a Lisboa, Cacilhas é uma freguesia do concelho de Almada. Entre 1967 e 2000, albergou um dos maiores estaleiros de reparação naval do mundo: a Lisnave, que chegou a empregar milhares de trabalhadores. Próximo dos antigos estaleiros, na Avenida Aliança Povo M.F.A., encontra-se o quartel-sede dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas, uma corporação com 133 anos de história. 

Sob o lema “Podemos não voltar... Mas vamos!”, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas conta atualmente com cerca de 110 bombeiros no seu quadro ativo. O seu quadro de honra é composto por cerca de duas dezenas de elementos que, “com zelo, dedicação, disponibilidade e abnegação, desempenharam, durante um longo período de tempo, sem qualquer punição disciplinar, funções num corpo de bombeiros”. Um desses elementos é Luís Murça, que integra a corporação há mais de 50 anos.

Natural de Cacilhas, onde nasceu em 1959, em frente ao antigo quartel dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas, Luís Murça seguiu os passos do pai e dedicou a vida à causa dos bombeiros da terra. “Quando tocava a sirene, saía de casa, fosse a que hora fosse — mesmo durante a noite — e ia a correr chamar três ou quatro bombeiros que moravam ali por perto, para seguirem para o local do incêndio. Depois ia para o quartel, porque, sendo o mais novo, ficava responsável pelo telefone”, recorda Luís, que tinha apenas 11 anos quando abraçou o voluntariado na corporação. Além do pai, que começou como cadete e chegou a comandante dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas, também os cinco irmãos de Luís seguiram o mesmo caminho. “A única pessoa lá em casa que não foi bombeira foi a minha mãe, mas, mesmo assim, muitas vezes trabalhou mais para a corporação do que muitos bombeiros”, afirma, sem reservas. 

O percurso oficial de Luís teve início aos 14 anos, como cadete. Depois passou a aspirante, seguiu para bombeiro de 3.ª e, no início dos anos 90, alcançou o posto de chefe. Mais de três décadas depois, a 15 de janeiro de 2024, Luís Murça foi integrado no quadro de honra dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas, a convite do comandante da corporação, Maximino Viegas. 

Ao longo dos seus 133 anos de existência, os Bombeiros Voluntários de Cacilhas marcaram presença em ocorrências de norte a sul do país, estando envolvidos em algumas das mais emblemáticas operações de combate a incêndios da história recente de Portugal. Entre elas destacam-se dois momentos particularmente marcantes: o incêndio no Chiado, em Lisboa, e a tragédia de Pedrógão Grande. Luís Murça esteve presente em ambos, como elemento do Corpo de Bombeiros de Cacilhas.  

No incêndio que deflagrou a 25 de agosto de 1988, nos antigos Armazéns Grandella, no Chiado, Luís chegou ao local cerca de três horas após o início do fogo. “O incêndio começou por volta das cinco da manhã. Cheguei a Lisboa cerca das oito”, recorda. “Estive lá aproximadamente vinte e seis horas”. Sobre aquele que ficou conhecido como o maior incêndio urbano do século XX em Portugal, não hesita em afirmar: “Foi uma situação fora do normal. Acho que nunca mais haverá uma ocorrência igual e tenho a certeza de que ninguém imaginou que pudesse acontecer algo daquela dimensão”. 

Já no caso do incêndio florestal de Pedrógão Grande, que teve início a 17 de junho de 2017, Luís Murça revela ter dificuldade em encontrar palavras. “Apanhei outros grandes incêndios, mas Pedrógão foi realmente indescritível”, diz, referindo-se à tragédia que vitimou 66 pessoas. “Quando partimos para lá, já sabíamos que era uma situação anormal, mas nunca imaginei encontrar um cenário tão devastador. Conjugaram-se vários fatores que fizeram com que o incêndio atingisse proporções monstruosas”, explica, antes de concluir: “Estive lá 24 horas, sempre a apagar fogo.”

Entre as ocorrências mais graves que enfrentou ao longo da carreira, o chefe Luís Murça recorda a explosão de um petroleiro atracado nos estaleiros da Lisnave, bem como várias situações “muito complicadas” nas instalações da Siderurgia Nacional, no Seixal. Desde um incêndio provocado por uma fuga de amoníaco, passando por outro causado pela queda de um vagão cheio de carvão coque, até a uma fuga de gás num sistema de tubagem, foram várias as situações em que sentiu a vida em risco. “Há ocorrências para as quais não há preparação possível. Temos de enfrentar o touro de frente. Nem todas as pessoas têm vocação para ser bombeiro”, afirma, de forma perentória.

Para Luís Murça, ser bombeiro exige coragem e determinação — mas também, como diz com franqueza, “é preciso ser um bocadinho maluco” para enfrentar certas realidades. “Um bombeiro, quando sai para uma ocorrência, nunca vai para nada de bom. Mas há situações que nos marcam profundamente — sobretudo as que envolvem crianças. Ficam a 'bater’, às vezes, durante mais de um mês. Temos de eliminar o ‘ficheiro’ e seguir em frente. Faz parte da vida que escolhemos”, desabafa. Antes de terminar, deixa um conselho aos jovens que pensam seguir este caminho: “É preciso ter amor à causa. Sem isso, não vale a pena enganarmo-nos a nós próprios. Se houver amor por isto, então é seguir em frente”.  

O amor à causa é fundamental para enfrentar os desafios do dia a dia, mas também para resistir às adversidades que acompanham a profissão de bombeiro em Portugal. Luís Murça lamenta a falta de reconhecimento por parte do Governo que, na sua opinião, continua a tratar os bombeiros voluntários como um “parente pobre”. Para Luís, há muito a melhorar na atual situação dos bombeiros portugueses, começando pelas condições salariais. “Basta olhar para o que se passa aqui ao lado, em Espanha — a diferença é abismal. Fui lá tirar dois cursos e percebi que não tem nada a ver. Há dez anos, um chefe ganhava o dobro do que eu ganhava cá. Quando mostrei a minha folha de salário a um colega espanhol, ele teve dificuldade em acreditar”, relata, lamentando que o papel fundamental dos bombeiros voluntários na sociedade civil continue a ser desvalorizado pelas entidades governamentais.  

Ao longo da sua carreira ao serviço dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas, Luís Murça foi distinguido várias vezes, tanto pela Liga dos Bombeiros Portugueses como pela Câmara Municipal de Almada. Há cerca de 20 anos, recebeu da autarquia a Medalha de Ouro da Cidade de Almada, em reconhecimento pelo seu contributo cívico. Mais recentemente, foi-lhe atribuído o Crachá de Ouro — a mais alta distinção honorífica da Liga dos Bombeiros Portugueses. “Já recebi tudo o que havia para receber em termos de distinções”, afirma, com humildade, o bombeiro mais antigo do concelho de Almada.

Mais de 50 anos depois de ter integrado o Corpo de Bombeiros de Cacilhas, Luís Murça não pensa afastar-se da causa que marcou a sua vida. Continua, como sempre, “disponível para o que for necessário”. Ainda assim, já tem preparada a frase que dirá aos seus camaradas no dia em que se despedir oficialmente do serviço ativo: “Um abraço grande a todos, até logo — e sempre que precisem, podem contar comigo”.

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