Diogo Amaro
Terra natal de D. Manuel I, conhecido como “o Venturoso”, Alcochete tornou-se vila durante a época dos Descobrimentos. Já no reinado de D. João II, surgem as primeiras referências documentadas à festa brava nesta localidade. Poucos anos depois, em 1515, D. Manuel I concedeu o foral à sua terra natal, um marco histórico para Alcochete. Desde então, a tauromaquia faz parte da identidade cultural do concelho, enraizando-se nas tradições mais antigas e populares da região. Esse legado é reconhecido oficialmente: desde 2012, a tauromaquia está classificada como Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal. As Festas do Barrete Verde e das Salinas, o ex-líbris das celebrações populares de Alcochete, são o maior reflexo da ligação profunda dos alcochetanos à festa brava. A organização destas festas é da responsabilidade da Câmara Municipal de Alcochete e do Aposento do Barrete Verde, uma agremiação que “visa, especialmente, o fomento do gosto pela festa brava”.
Foi no seio desta associação que, em 1965, nasceu o Grupo de Forcados Amadores do Aposento do Barrete Verde de Alcochete, um dos dois grupos de forcados existentes na vila. Com quase 60 anos de história, o grupo já contou nas suas fileiras com nomes ilustres da forcadagem nacional, como António Luís Penetra, Luís Cebola e João Salvação. Um dos momentos mais marcantes da história do grupo ocorreu a 3 de agosto de 2017, quando, pela primeira e única vez, um forcado do Aposento do Barrete Verde saiu em ombros da praça de touros do Campo Pequeno, a mais emblemática do país. Após uma impressionante pega de caras ao segundo intento, Diogo Amaro inscreveu o seu nome nos anais da tauromaquia portuguesa — um feito que é, provavelmente, o ponto mais alto de uma carreira de forcado repleta de conquistas e peripécias.
Natural de Torres Vedras, onde nasceu em 1993, Diogo Amaro passou a infância e adolescência entre Alenquer e o Carregado. A sua ligação a Alcochete e ao Grupo de Forcados Amadores do Aposento do Barrete Verde surgiu de forma inesperada — especialmente porque ninguém na sua família tinha qualquer ligação à festa brava.
Um dia, aos 16 anos, enquanto tomava café com um amigo em Alenquer, este comentou que no dia seguinte teria de ir a Alcochete para um treino com o grupo de forcados. “Fiquei com aquilo do treino na cabeça. Ainda nesse dia, mandei-lhe uma mensagem a perguntar se podia ir com ele. Ele, com esperteza, respondeu: ‘Mas é para ver ou para treinar?’ Eu disse que, pelo menos, era para ver”, conta Diogo. “Estava na bancada a assistir ao treino quando o cabo do grupo apontou para mim e perguntou se queria experimentar. Eu disse que sim, apesar de nunca ter pegado uma vaca. Ia acontecendo uma tragédia. Ao sair da cara da vaca, depois da pega, entrei em pânico e fugi para a zona dos curros, em vez ir para o burladero. Como sou pequeno, não conseguia saltar os muros do tentadeiro. A vaca veio atrás de mim e meteu-me o corno entre as pernas. Só me lembro de cair dentro de uma pia de cimento e de ser agarrado por uma mão do meu antigo cabo, o João Salvação, que me perguntou se estava tudo bem, enquanto agarrava a vaca por um corno com a outra mão”. Nesse momento, claramente derrotado por uma vaca, Diogo Amaro já sentia que era forcado — só não imaginava que viria a tornar-se um dos grandes forcados da sua geração.
Alguns meses depois, na Praça de Touros da Figueira da Foz, Diogo Amaro fez a sua primeira pega, marcando o início de muitas outras. Como forcado da cara — o primeiro da fila de oito homens que entram na arena para a pega — construiu um percurso notável, participando nas mais prestigiadas praças de touros de Portugal e também em países como Espanha, França e México, sempre honrando a vila de Alcochete e o Grupo de Forcados Amadores do Aposento do Barrete Verde.
Ao longo dos 12 anos em que vestiu a farda de forcado, o seu nome apareceu inúmeras vezes na imprensa taurina nacional, sendo apelidado de “pequeno gigante”, tanto pelos vários troféus conquistados pela melhor pega, como pelas noites menos felizes. Uma dessas noites aconteceu no Campo Pequeno — a mesma praça de onde, alguns anos antes, saiu em ombros. Numa das raras vezes em que o seu pai assistiu ao vivo a uma atuação do grupo, Diogo sofreu o acidente mais grave da sua carreira. “No dia anterior, disse ao meu pai que seria melhor não ir à corrida. Sentia que me ia magoar, não sei explicar porquê”, recorda, lamentando não ter conseguido demover o pai. “Peguei o primeiro touro da corrida, com mais de seiscentos quilos, embora, por vezes, o tamanho não signifique tudo. Não estive bem no momento da reunião, quando se recebe o touro. Acabei projetado para o ar e caí no chão. Ao tentar levantar-me, não sentia braços nem pernas, apenas a cabeça. O corpo bloqueou! Pensei que tinha acontecido uma tragédia. Foi um momento marcante porque, apesar de tudo, estive sempre consciente”, lembra Diogo, que ficou em observação durante quatro horas no hospital, de onde saiu pelos próprios pés. “Foi um milagre”, afirma, convicto de que houve intervenção divina.
Para Diogo Amaro, “um forcado tem de conhecer o sabor de fazer uma grande pega, logo à primeira, com o grupo a ajudar, mas também tem de saber cair, levantar-se, limpar o pó da jaqueta e voltar a tentar”. Quando questionado sobre como enfrenta o medo perante um touro bravo de mais de 500 quilos, surpreende com a resposta: “O medo existe sempre. Creio que há dois tipos de medo: o medo do touro e o medo do público. Para mim, o que pesa mais é o medo do público — o receio de não corresponder às expectativas dos aficionados. Houve momentos em que temi não estar à altura do acontecimento”.
Há cerca de dois anos, Diogo Amaro despediu-se das arenas em Alcochete, a terra que o acolheu como filho. Nas redes sociais, deixou estas sentidas palavras: “Entramos meninos e saímos homens. O amor a um grupo de homens, a uma flâmula, a um estandarte e a uma história de estoicismo. Aprendi o que é a camaradagem, a superação e a verdadeira essência de um grupo de amigos. Que tudo dá, sem nada pedir! Aprendi a humildade dos humildes, a gentileza do escutar, a gratidão do que se recebe dando. Meninos que se fazem homens de fé. Obrigado, obrigado do fundo do meu coração”.
Olhando para trás, Diogo Amaro reconhece sem hesitar a importância que o Grupo de Forcados Amadores do Aposento do Barrete Verde de Alcochete teve na sua vida. “O tempo que passei nos forcados moldou-me profundamente; todos os dias coloco em prática lições que aprendi nesse período. Foi uma verdadeira escola de valores”, afirma, antes de concluir: “Os forcados sempre me deram mais do que aquilo que consegui retribuir”.
Pouco tempo depois de entrar para os forcados, aos 17 anos, Diogo Amaro mudou-se com a família para Vila Verde dos Francos, uma aldeia situada no sopé da Serra de Montejunto. Foi lá, na terra dos avós maternos, que descobriu uma nova paixão: cuidar de cabras e ovelhas. Curiosamente, alguns anos antes, o pai costumava brincar que, se Diogo tivesse más notas na escola, lhe compraria um rebanho de cabras para pastar na Serra de Montejunto. Mal sabia ele que esse “castigo”, dito meio a sério, meio a brincar, acabaria por se tornar realidade.
Tudo começou quando Diogo deixou a escola e foi trabalhar na Quinta da Granja, uma propriedade dedicada à produção de uva de mesa 100% nacional. Pouco depois, num café de Vila Verde dos Francos, um senhor mostrou-se disposto a vender meia dúzia de cabras, e Diogo não hesitou. “Comprei as cabras e fiquei logo sem dinheiro”, recorda, acrescentando que foi aí que decidiu dedicar-se à produção de queijos. “O meu bisavô tinha vacas leiteiras, e a minha bisavó e avó faziam queijos que vendiam de porta em porta. Depois de comprar as primeiras cabras, a minha avó ensinou-me a fazer queijos e ajudou-me muito nessa parte”, conta, orgulhoso por dar continuidade a esse legado familiar.
Com o tempo, o rebanho de Diogo Amaro foi crescendo — assim como as encomendas dos seus queijos curados. Em 2012, com apenas 19 anos, decidiu criar a sua própria marca: O Castiço. “O nome ‘castiço’ surgiu do trabalho que tive para ganhar dinheiro para comprar as primeiras cabras. Como sou muito curioso e gosto de conversar, começaram a chamar-me castiço. Quando chegou a altura de batizar os queijos, achei que era um excelente nome para registar”, conta Diogo. A ideia de usar o seu rosto como imagem da marca partiu de um grande amigo, Nuno Graciano — também ele produtor de queijo — que faleceu em 2023. Diogo chegou a ter quase 400 cabeças de gado, entre cabras e ovelhas.
No entanto, a chegada da pandemia trouxe uma forte quebra nas vendas, obrigando-o a ajustar o rumo do negócio. “Atualmente, já não tenho tantos animais. Também reduzi os custos com palha e ração, porque comecei a andar mais horas com o rebanho na serra”, explica. Hoje em dia, prefere focar-se em servir bem os clientes que já conquistou, com “seriedade, palavra e, acima de tudo, qualidade”. A marca O Castiço está atualmente presente em vários restaurantes tradicionais do Ribatejo, da Margem Sul e de Lisboa, como o Solar dos Nunes ou o Sabores do Campo.
Em agosto do ano passado, Diogo Amaro viu-se forçado a parar devido a uma hérnia discal lombar. A produção de queijos ficou então a cargo do pai, que sempre o apoiou no negócio, e de uma pessoa da sua confiança. Foi nesse período difícil que Diogo reencontrou uma paixão de infância: a pintura. “Não pratiquei durante muitos anos. Não tinha tempo, nem estava virado para pintar. Com a lesão na coluna, fui obrigado a abrandar e senti uma necessidade interior de criar, de pintar”, recorda, acrescentando: “Nos momentos mais difíceis da minha vida, foi a arte que me agarrou — não fui eu que agarrei a arte”.
O primeiro trabalho “a sério” que fez foi um retrato da sua mulher. “Ela gostou da pintura e perguntou-me porque não começava a publicar os meus trabalhos nas redes sociais”, conta Diogo. Pouco tempo depois, fez a sua primeira venda. Desde então, tem pintado quase todos os dias e já vendeu várias obras. A sua extensa rede de contactos — alicerçada em princípios de honestidade e confiança — tornou-se também a base dos seus clientes. Além de amigos, Diogo orgulha-se de já ter recebido encomendas de restaurantes que também compram o seu queijo.
Nas suas obras, utiliza acrílicos e óleos sobre tela, procurando um equilíbrio entre formas bem definidas e elementos mais abstratos. Muitas das suas pinturas retratam o universo tauromáquico: touros na lezíria, rostos emblemáticos da festa brava, cenas que conjugam luz e sombra, num jogo que Diogo define como “preto no branco”. “A tourada é muito isto: preto no branco”, resume o antigo forcado do Aposento do Barrete Verde de Alcochete. Enquanto pintor, presta homenagem às suas paixões através dos rostos que pinta na tela, os quais contam histórias que conhece bem.
A arte é também uma forma de catarse para Diogo Amaro, uma maneira de expressar o que lhe vai na alma. A obra Estranha Pessoa Esta é exemplo disso. “Fiz esta pintura mais abstrata numa altura em que estava a atravessar uma fase complicada. Não conseguia entender por que razão o negócio dos queijos não estava a correr bem, apesar de tanto esforço e dedicação”, partilha, concluindo: “Acho que a arte tem o seu timing. Há coisas que têm de ser feitas hoje — não é ontem nem amanhã”.
Produtor de queijo desde os 19 anos, Diogo Amaro nunca imaginou que um dia enveredaria pelo mundo das artes. “Nunca me passou pela cabeça ganhar dinheiro a pintar. Mesmo os primeiros trabalhos que fiz mais a sério, nunca foi com o intuito de vender — era apenas uma necessidade de criar”, revela, enquanto contempla a vila de Alcochete.
Catorze anos depois de ser acolhido como um filho da terra, Diogo continua a emocionar-se sempre que fala de Alcochete. “Sempre que passo pelas Salinas do Samouco, sinto um arrepio. Amo Alcochete. É a minha terra de eleição. Tenho uma estima enorme pelas gentes desta terra. Nem tenho palavras para descrever o que sinto”, confessa o antigo forcado que, antes de entrar para a arena, dizia ao seu grupo: “Bora lá, rapaziada da borda d’água”. De peito aberto — nas arenas e na vida — Diogo Amaro promete continuar a viver com a mesma “intensidade desmedida” que o caracteriza.