Margarida Pragana Gamito

A história da Latoaria Maciel remonta ao final do século XVIII. Embora o primeiro registo comercial seja de 1810, a oficina abriu portas pela primeira vez em 1798, fundada por Epifânio Trucato Maciel. Foi ele quem terá estabelecido os elevados padrões de qualidade que, desde então, distinguiram a Latoaria Maciel — padrões que cedo conquistaram reconhecimento, nomeadamente por parte de Diogo Inácio de Pina Manique. Após o terramoto de 1755, Lisboa foi reconstruída segundo as diretrizes de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Coube a Pina Manique, então Intendente-Geral da Polícia durante o reinado de D. Maria I, a responsabilidade pela iluminação pública da capital. Para esse fim, encomendou à Latoaria Maciel quatro modelos de lanternas em ferro zincado, destinados a iluminar as principais ruas e praças de Lisboa: a Lanterna Pina Manique, a Lanterna de Rua, a Lanterna Severa e a Lanterna Misericórdia. 

Mais de dois séculos depois, muitas destas lanternas continuam a iluminar Lisboa — testemunho duradouro da qualidade do trabalho artesanal da Latoaria Maciel e da história viva de uma das lojas mais antigas da cidade.

Até 1910, ano da implantação da República em Portugal, a Latoaria Maciel realizou inúmeros trabalhos para a Casa Real Portuguesa, bem como para sés catedrais em todo o país. Durante o século XX, sobreviveu a duas guerras mundiais, que afetaram gravemente a produção, resistiu a tentativas de açambarcamento após o 25 de abril de 1974 e enfrentou a era do plástico — responsável pelo encerramento da maioria das latoarias tradicionais. Em Lisboa, apenas uma resistiu até aos nossos dias: a Latoaria Maciel. A longevidade desta casa deve-se à qualidade excecional dos seus produtos, mas também à visão dos seus proprietários. Um exemplo notável é a invenção do sistema “bailarina” — uma solução engenhosa para aquecer água sem recorrer ao fogo — desenvolvida durante a Segunda Guerra Mundial. Este sistema permitia às famílias iluminar as suas casas reutilizando desperdícios como jornais e tecidos. A aposta estratégica na iluminação como imagem de marca revelou-se decisiva, permitindo à Latoaria Maciel destacar-se num setor em transformação. Durante décadas, os seus artesãos produziram uma vasta gama de objetos — de baldes, bacias e regadores a formas de bolos e lanternas para carruagens. Contudo, com a expansão da indústria do plástico, a Latoaria Maciel concentrou-se naquilo que a tornou célebre: a iluminação.   

“Acho que a primeira geração da Latoaria Maciel nunca pensou que a sétima teria a mesma vontade e paixão”. As palavras são de Margarida Pragana Gamito, a mulher que representa a sétima geração da família à frente da histórica Latoaria Maciel. Filha de Rui Pragana, que foi sócio-gerente da latoaria durante 37 anos, Margarida cresceu no coração do Bairro Alto, numa casa na Rua da Misericórdia — mesmo por cima das oficinas da empresa. “No tempo do meu pai, as mulheres não entravam nas oficinas. Estava completamente fora de questão”, recorda. “Eu queria muito entrar, mas o meu pai dizia sempre: ‘Do balcão para dentro, não passas’”. Quando Margarida perguntava porquê, Rui Pragana justificava-se com os perigos das ferramentas de corte e com o ambiente masculino da oficina — “as coisas e conversas de homens”, dizia ele. Apesar da proibição, Margarida lembra-se de, ainda assim, visitar a oficina “à socapa” para cumprimentar os diferentes artesãos.

Nascida numa família com quatro irmãos, Margarida Pragana Gamito —  atual proprietária da Latoaria Maciel — diz ter sido “criada no meio do amor”. A loja da família foi o cenário de muitas das suas memórias de infância, que guarda com grande carinho. Apesar do afeto profundo pela Latoaria Maciel, Margarida admite: “Não era a minha vontade, nem nunca me passou pela cabeça ficar aqui a trabalhar”.

Seguiu, por isso, um percurso académico e profissional afastado do negócio da família — até que, em 2004, tudo mudou. “Na altura, trabalhava para uma empresa chamada CEMI, e era uma das responsáveis pelo outbound marketing da Coca-Cola”, recorda. “O meu pai pediu-me para ficar aqui enquanto fazia tratamentos de quimioterapia. Como tinha isenção de horário e trabalhava muitas vezes a partir de casa, disse-lhe que podia fazer o meu trabalho a partir da loja. Quando ele recuperasse, eu seguiria a minha vida”. Mas o desfecho foi outro. “Quando dei por mim, já estava completamente envolvida. Já toda eu era Maciel”. Ser Maciel, explica Margarida, vai muito além da descendência direta de Epifânio Trucato Maciel, o fundador. É preciso amar e respeitar a história da casa — e, acima de tudo, valorizar quem nela trabalha. “Sem essas pessoas, não se vendem lanternas”, dizia Rui Pragana, seu pai, num dos muitos ensinamentos que lhe deixou.

“Foram as histórias da Latoaria Maciel que me fizeram ficar”, admite Margarida, antes de afirmar: “Se o meu pai não tivesse falecido, teria ficado na mesma”. Após a sua morte, em 2016, Margarida assumiu definitivamente o comando da Latoaria Maciel — num dos momentos mais difíceis da sua história. “Em 2014, com a nova lei do arrendamento, fomos literalmente despejados do espaço onde estávamos há mais de 200 anos”, conta. Herdou a loja sem dinheiro, ao contrário das gerações anteriores. Além disso, a empresa foi alvo de um desfalque, cometido por um membro da própria família. Sem espaço, sem capital e com um futuro incerto, Margarida ficou apenas com o conteúdo das oficinas. “Ninguém da família quis ficar com as máquinas e as ferramentas. Percebi que nenhum deles queria o que eu queria — as máquinas da latoaria. Eu queria a arte”. Foi nesse momento que se deu conta: “Era eu quem tinha de estar à frente da Latoaria Maciel.” Decidiu então fechar a sociedade existente e fundar uma nova empresa. “Disse à minha família que queria encerrar a Maciel como estava e abrir uma nova. E assim foi”. O período que se seguiu foi especialmente duro. Sem dinheiro para pagar uma renda no centro da cidade, Margarida chegou a considerar instalar a loja noutros bairros. Até que surgiu a possibilidade de abrir temporariamente na Rua da Boavista. Dois anos depois, a Latoaria Maciel encontrou um novo lar: o Mercado de Ofícios do Bairro Alto (MOBA), espaço criado com o apoio da Junta de Freguesia da Misericórdia e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. 

Margarida não esquece quem esteve ao seu lado nos tempos difíceis, especialmente aqueles que contribuíram para a reabertura da Latoaria Maciel. Mas há uma pessoa cuja presença foi constante — nos bons e maus momentos —  desde 1996: Rui Gamito. Foi nesse ano que se conheceram nas oficinas da Latoaria Maciel, onde Rui trabalhou durante alguns verões. Da relação nasceu Madalena, a única filha do casal. Casaram-se em 1997 e, durante anos, seguiram percursos profissionais distintos — Margarida ligada ao marketing e Rui às artes. Formado na Escola de Artes e Ofícios do Espetáculo, Rui foi durante 12 anos diretor de cenografia do Casino Estoril. Mais tarde, após ter sido despedido na sequência de um processo coletivo, foi convidado a integrar a equipa da Latoaria Maciel. A partir de 2004, passaram a trabalhar juntos a tempo inteiro. Lado a lado, enfrentaram todos os desafios, desde o encerramento da loja até ao reerguimento do nome e da dignidade da Latoaria Maciel. Hoje, olhando para trás, Margarida não hesita: “Esta caminhada nunca seria possível sem o Rui”.

Quando começou a trabalhar como latoeiro, Rui Gamito teve a sorte de aprender com os grandes mestres da casa. Um deles foi o Mestre Rufino, que dedicou 67 anos da sua vida à Latoaria Maciel e trabalhou com três gerações da família — o avô, o pai e a própria Margarida. Faleceu durante a pandemia, deixando uma marca profunda. “É uma perda irreparável na minha vida, não só como artesão, mas, acima de tudo, como ser humano. Era um ser humano maravilhoso!”, diz Margarida, visivelmente emocionada. Com a sua morte, Rui tornou-se o único artesão nas oficinas — mas não por muito tempo.

Há quatro anos, Li Jen Chou, um técnico oficial de contas oriundo de Taiwan, tornou-se o primeiro trabalhador estrangeiro da Latoaria Maciel. “Tem evoluído muito, mas ainda tem muito para aprender. Esta arte é muito exigente. São precisos cerca de oito anos de prática para se tornar um bom latoeiro”, explica Margarida, que teve o privilégio de conviver com vários mestres ao longo da vida. Admiradora incondicional do trabalho artesanal, Margarida acredita que o sucesso da Latoaria Maciel vai muito além da excelência dos seus produtos. “Para além do know-how extraordinário e da qualidade das matérias-primas — que nunca comprometemos — existe, dentro da Maciel, uma comunhão muito especial. As pessoas sentem-se bem a trabalhar aqui”, afirma com um sorriso. 

Margarida Pragana Gamito orgulha-se também do papel social que a loja da família sempre desempenhou. “Tanto o meu pai como o meu avô tinham um forte sentido de responsabilidade social, mas faziam tudo na penumbra”, conta. Um exemplo disso são os comedouros para os animais do Jardim Zoológico de Lisboa e as caixas de esmolas das igrejas, produzidos e oferecidos pela Latoaria Maciel às respetivas instituições. “Continuamos a fazer esse trabalho social. Acredito profundamente que, quando se faz o bem, recebe-se o bem”, declara com convicção.

Se em tempos chegaram a trabalhar mais de duas dezenas de pessoas nas oficinas da Latoaria Maciel, hoje são apenas dois os artesãos que mantêm viva esta tradição: Rui e Li. Já Margarida está à frente da parte administrativa e comercial da loja. Rodeados por máquinas e ferramentas com mais de um século de história, Rui e Li preservam uma arte em risco de desaparecer. Para Margarida, é urgente “criar uma entidade dedicada à formação de aprendizes nas várias artes e ofícios”. Ao contrário de outros ofícios que desapareceram com o tempo — como o de funileiro, caldeireiro ou tanoeiro —, a latoaria continua viva em Lisboa. Graças à Latoaria Maciel, esta arte atravessou mais de dois séculos na capital portuguesa, sendo hoje a última casa do género ainda em atividade na cidade.

Desde o início do século XIX, quando começou a produzir peças para a coroa portuguesa, a Latoaria Maciel sempre teve uma clientela diversificada. Entre os seus clientes figuram nomes de destaque das artes, como o designer Christian Louboutin, a atriz Monica Bellucci e a designer de interiores Gracinha Viterbo; do mundo empresarial, como a família Amorim; e até da realeza, como o príncipe Leo von Hohenberg, descendente de uma família nobre austríaca. Peças com o selo da Latoaria Maciel podem ser encontradas em lugares emblemáticos como o Palácio de Queluz, o Palácio dos Duques de Cadaval e o Vidago Palace Hotel. Mas para além dos nomes ilustres, há uma vasta lista de clientes anónimos, de todas as idades e classes sociais, que continuam a confiar no trabalho desta casa centenária. “As peças da Maciel são feitas para durar”, afirma Margarida, sublinhando uma das principais qualidades dos produtos da latoaria: a durabilidade. “Tenho clientes que têm lanternas da Latoaria Maciel há mais de 40 anos e só voltam para repintar. São peças para a vida”, diz, com orgulho. 

O design é outro fator diferenciador, que atrai arquitetos e designers de renome. E como se não bastassem a qualidade e a longevidade, a Latoaria Maciel também se destaca pelo compromisso ambiental. “Os nossos materiais são todos recicláveis, com exceção dos casquilhos, que são em plástico. Mesmo assim, incentivamos os clientes a optar por versões em latão ou porcelana”, explica Rui Gamito, enquanto transforma uma chapa em fios na fieira que pertenceu ao Mestre Rufino.

O legado da Latoaria Maciel foi sendo passado de geração em geração até chegar a Margarida Pragana Gamito — a primeira mulher da família a assumir a gestão desta casa centenária.  “Costumo dizer que herdei a Maciel quase sem liquidez nenhuma, mas herdei o mais importante: o amor a isto”, afirma, apontando com carinho para as oficinas da latoaria. Esse “amor maior”, como lhe chama, já começou a contagiar a geração seguinte. “Quando a Latoaria Maciel fechou, levámos esse problema para casa. A minha filha sentiu o nosso desespero e acompanhou o renascimento da latoaria”, conta Margarida. “Achava que ela não tinha qualquer interesse, até que, no trabalho final de curso, escolheu precisamente a latoaria como tema”. Além de Madalena, também dois sobrinhos parecem ter herdado o “bichinho” e, segundo Margarida, talvez um dia venham a juntar-se à filha para dar continuidade a esta história familiar. Mas, caso isso não aconteça, há apenas um desejo: “Mesmo que um dia isto deixe de estar na nossa família, só espero que fique nas mãos de alguém que ame e respeite a história da Latoaria Maciel”. Por agora, um dos grandes propósitos da Maciel é também garantir a transmissão de conhecimento. “Se não tivermos artesãos, este saber-fazer morre”, alerta Margarida, admitindo: “Seria uma frustração ter de fechar a loja por falta de quem aprenda, mas fecharia com mais dignidade do que quando a reabri.”

Quem quiser saber mais sobre esta arte ancestral — ou até aprender o ofício — será sempre bem-vindo à Latoaria Maciel. “Tenho muito gosto em que as pessoas conheçam e valorizem esta arte, porque é mesmo muito bonita”, diz, antes de se juntar a Rui e a Li para lanchar, num gesto simples que continua a alimentar o espírito de família que sempre fez parte da alma da Latoaria Maciel. 

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