Rosa Cunha
O Mercado da Ribeira, outrora também conhecido como Mercado 24 de Julho, é o mais antigo de Lisboa. Inaugurado em 1882, junto ao Cais do Sodré, foi desde sempre um ponto de referência no abastecimento da cidade. Ao longo dos anos, enfrentou um incêndio e várias remodelações, até que, em 2014, ganhou uma nova vida com a chegada do Time Out Market — um conceito criado pela equipa da revista Time Out Portugal. Desde então, os tradicionais vendedores de carne, peixe, fruta e flores passaram a partilhar o espaço com dezenas de restaurantes, bares, lojas e até uma sala de espetáculos. Entre os rostos mais antigos deste mercado está Rosa Cunha, peixeira há 42 anos.
Nascida em Pardilhó, no concelho de Estarreja, Rosa Cunha tinha apenas 2 anos quando se mudou com a família para o Feijó, em Almada. O pai foi o primeiro a encontrar trabalho em Lisboa, como operador de rebocadores no rio Tejo. Pouco depois, a mãe seguiu-lhe os passos e começou a trabalhar como peixeira, transportando a canastra de peixe à cabeça pelos bairros ribeirinhos. Anos mais tarde, abriu uma banca no Mercado da Ribeira, onde trabalhou até à reforma. Rosa seguiu o exemplo materno e, aos 14 anos, começou a comprar, arranjar e vender peixe ao lado da mãe.
Por volta dos 20 anos, já tinha a sua própria banca, conquistando progressivamente a reputação de referência em qualidade no Mercado da Ribeira. Em 2001, fundou a empresa Rosanamar, que ocupa hoje quatro bancas repletas do melhor peixe e marisco do Atlântico. Atualmente, as bancas de Rosa Cunha estão entre as mais procuradas do mercado. Abastecem cerca de uma centena de restaurantes em Lisboa — incluindo alguns dos melhores chefs nacionais — além de uma fiel clientela particular. Muitos dos seus clientes acompanham-na desde os seus 14 anos. “Sempre disse — e faço questão de transmitir a quem trabalha comigo — que todos os clientes devem ser tratados da mesma forma, independentemente do que possam gastar”, afirma Rosa, revelando um dos segredos do seu sucesso.
A peixeira mais conhecida do Mercado da Ribeira orgulha-se da relação de confiança e amizade que construiu ao longo dos anos com os seus clientes — a quem, aliás, chama “família”. “Gosto muito de conversar. Há quem ache cansativo dar dois dedos de conversa, mas eu nunca achei”, afirma Rosa, com um sorriso. Acrescenta que, para além da simpatia, é preciso ter paciência e empatia: “Nem sempre os clientes estão no seu melhor dia. Às vezes, chegam cabisbaixos, parecem maldispostos ou antipáticos, mas nunca sabemos o que está por trás”. Muitas vezes, diz, bastam umas palavras para quebrar o gelo: “Acabam por desabafar e, quando saem daqui, já levam um sorriso no rosto”. Com simplicidade, Rosa resume o que sempre a motivou: “Sempre gostei de trabalhar na venda ao público”.
A simpatia e boa disposição de Rosa Cunha são marcas que a distinguem no Mercado da Ribeira — mas explicam apenas parte do seu sucesso. A empresa que fundou, a Rosanamar, é sobretudo reconhecida pela excelência e frescura do pescado que comercializa. “Temos muitos clientes particulares que nem conhecemos pessoalmente, falamos apenas por telemóvel”, conta Rosa. “Fazemos muita distribuição. As nossas carrinhas andam na rua todos os dias a fazer entregas”.
Sob o lema “O mar dá, a Rosa entrega”, a Rosanamar abastece-se em várias lotas nacionais, com especial destaque para a lota de Peniche. Já os peixes de origem estrangeira, como pampos ou garoupas, são adquiridos no MARL — o Mercado Abastecedor da Região de Lisboa. “O peixe mais vendido é o salmão. Mas também vendemos muitas corvinas, lírios e garoupas para os restaurantes”, refere Rosa, lembrando que a oferta nas suas bancas varia diariamente. Ainda assim, há produtos que nunca faltam: polvo, robalo, dourada, salmonete, cantaril, lula, choco, peixe-galo, espadarte, salmão, garoupa, pescada, pargo, atum, pregado, raia, linguado, tamboril, carapau e safio — para não falar do marisco. Para além de escolher pessoalmente todo o pescado que vende, Rosa lida com cada peça como se fosse preciosa. “O peixe é um produto nobre e delicado. Não se pode pegar num peixe como se pega num pedaço de madeira ou de ferro. Tem de se pegar com um cuidado especial. Pego num peixe como se fosse uma jóia — uma jóia que, se cair, se pode partir”, afirma, com um sorriso.
Com mais de quatro décadas de trabalho no Mercado da Ribeira, Rosa Cunha guarda na memória episódios que, segundo ela, seriam hoje impensáveis. Um desses exemplos são as discussões — e até brigas — entre peixeiras por causa dos pregões, que acabaram por levar a Câmara Municipal de Lisboa a proibir o seu uso. Outro episódio “muito comum” nos primeiros anos de Rosa no mercado envolvia uma prática desonesta relacionada com a pesagem do peixe. “Havia sempre um pequeno peso encostado à balança, fora do alcance da vista do cliente. Antes de pesar o peixe, a peixeira colocava discretamente o peso na boca do animal”, recorda. Mas faz logo questão de sublinhar: “Hoje seria impensável fazer uma coisa dessas”. Para além de existirem mais regras e fiscalização, os clientes estão hoje muito mais atentos, exigentes e bem informados.
Apesar de reconhecer que a chegada do Time Out Market trouxe “uma mais-valia”, Rosa Cunha não hesita em criticar a forma como tem ocorrido a transformação do Mercado da Ribeira. “Não entendo o que está a acontecer com o mercado tradicional. As lojas fecham e não voltam a abrir. Há muitas fechadas”, desabafa, mostrando-se determinada. “Gostaria de falar olhos nos olhos com o Dr. Carlos Moedas sobre o futuro do Mercado da Ribeira. Este é o mercado mais emblemático de Lisboa e merece um tratamento diferente. Isso entristece-me todos os dias”, acrescenta, enquanto observa as lojas vazias que cercam as suas bancas.
Ao lado da filha mais velha, Eliana Sofia, e acompanhada por quatro funcionárias, todas com “mais de vinte anos de casa”, Rosa Cunha continua a dar vida ao mercado. A movimentação e a animação ao redor das suas bancas contrastam com a inércia que domina o restante espaço. Faça chuva ou faça sol, a peixeira de Pardilhó mantém-se firme, sempre com a simpatia e boa disposição de sempre. “Se gostas do que fazes, já tens meio caminho andado para que as coisas corram bem. E eu gosto muito do que faço”, afirma, com um sorriso rasgado.