Manuel “Gouvelas”

Banhada pelos rios Tejo e Almonda, em plena lezíria ribatejana, a Golegã é uma vila do distrito de Santarém. As terras férteis que a circundam, onde se localiza boa parte da Reserva Natural do Paul do Boquilobo, são propícias à agricultura e a pastagens para a criação de gado, como vacas, ovelhas e cavalos. É incontornável a importância da Feira Nacional do Cavalo, um evento que atrai, todos os anos, cerca de um milhão de pessoas a esta vila ribatejana. No concelho da Golegã, existem várias coudelarias e ganadarias, algumas delas instaladas em quintas centenárias. Umas dessas quintas, situada numa das extremidades da vila da Golegã, é a Quinta de Santo António, sede da Coudelaria Coimbra de Castro Canelas. A coudelaria é apenas uma das muitas atividades desenvolvidas no interior da Quinta de Santo António, uma propriedade que se estende por centenas de hectares. Ao longo dos anos, foram muitas as pessoas que trabalharam para a família proprietária desta quinta setecentista, mas nenhuma foi tão marcante como Manuel Inácio de Oliveira.

Nascido a 19 de fevereiro de 1928, num lugar chamado Ervideira de Cima, freguesia do Chouto, concelho da Chamusca, Manuel Inácio de Oliveira tinha apenas 7 anos quando começou a trabalhar como ajudante de pastor de ovelhas na herdade onde o pai também trabalhava. À medida que os anos foram passando, os seus trabalhos foram sendo outros. Trabalhou com bois, mulas e éguas, plantou árvores e podou-as, roçou mato, cultivou milho e arroz, entre outros trabalhos agrícolas. Quando foi chamado a cumprir o serviço militar, em 1949, Manuel já levava 14 anos de trabalho ao serviço da mesma família.

Tendo cumprido o serviço militar em Portalegre, onde esteve 16 meses e 5 dias, Manuel regressou à sua terra natal para continuar a sua carreira profissional. De feitor a guarda-florestal, atividade que exerceu durante 22 anos, Manuel Inácio de Oliveira fez um pouco de tudo na Herdade de Talasnas. Até 25 de abril de 1974, altura em que a herdade foi ocupada no âmbito da Reforma Agrária, Manuel foi responsável por uma propriedade enorme, bem como por inúmeros trabalhadores. Enquanto guarda-florestal, Manuel zelou pela defesa do património florestal da Herdade de Talasnas como se fosse sua propriedade, protegendo-o de roubos de cortiça e caçadores furtivos. “Uma vez, ouvi tiros em certo sítio. Agarrei na carabina, montei-me no cavalo e dirigi-me para esse local. Quando lá cheguei, encontrei vinte homens a caçar. Perguntaram o que andava para ali a fazer. Disse que aquela era a minha vida. Juntaram-se todos à minha volta e pensei ‘ai Jesus, ainda me matam para aqui’”, recorda Manuel. Após alguns momentos de tensão, um dos caçadores acabou por compreender a posição do guarda-florestal e conseguiu convencer os restantes caçadores a abandonar a herdade.

Com a Reforma Agrária, a Herdade de Talasnas foi expropriada à família Coimbra de Castro, um momento marcante na vida de Manuel Inácio de Oliveira, ou “Gouvelas”, alcunha pela qual é conhecido. Viu-se obrigado a abandonar a sua terra natal e, depois de uma breve passagem pela Suíça, onde trabalhou em estufas de produtos hortícolas, fixou-se na Golegã, como trabalhador da Quinta de Santo António.

Adquirida no princípio do século XX por João Coimbra, a Quinta de Santo António, antiga Quinta da Baralha, é hoje propriedade da sua neta, Fernanda Coimbra de Castro Canelas. Manuel Inácio de Oliveira vive próximo da quinta onde trabalhou cerca de 45 anos. “Eu é que mandava no pessoal todo. Tinha ordens dos patrões para dizer como é que se fazia”, conta com orgulho. Quando atingiu a idade da reforma, no início dos anos 90, Manuel mostrou vontade em continuar a trabalhar na Quinta de Santo António. A família aceitou com agrado a sua decisão, já que Manuel continuava perfeitamente apto para trabalhar, além de ser o seu melhor trabalhador. Os anos passaram-se e, há cerca de uma década, o patrão propôs-lhe que viesse trabalhar apenas três dias por semana. Manuel aceitou a proposta, tendo continuado a trabalhar das 8h às 17h, durante três dias da semana. Nos restantes dias, não deixou de frequentar a Quinta de Santo António, estando sempre disponível para ajudar no que era preciso. Há cerca de 3 anos, Manuel deixou definitivamente de trabalhar, mas não cortou os laços que o unem à família Coimbra de Castro Canelas.

Todas as manhãs, depois de tomar café, pega na sua bicicleta e vai até à Quinta de Santo António, onde tem uma pequena horta cedida pelo seu antigo patrão. Na sua horta, cultiva desde tomates e pepinos até favas, cebolas e curgetes. Quando se sente cansado, senta-se num cepo de madeira à sombra de uma figueira. “Depois do almoço, deito-me um bocado até às 15h e depois vou até à horta outra vez. É assim que passo o tempo. Em vez de estar a ver televisão, venho para aqui”, diz Manuel, que fez 96 anos há cerca de um mês. Apesar de já não conduzir os tratores da quinta, função que exerceu durante muitos anos, Manuel viu, recentemente, renovada a carta de condução por mais dois anos. “O médico passou-me uma carta para viver mais dois anos”, graceja, antes de acrescentar que ainda gosta de dar as suas voltas. “Vou a Torres Novas, vou ao Entroncamento, vou à Chamusca, só a Lisboa é que evito ir”, diz Manuel, cuja única filha vive na capital do país. A sua mulher, Palmira, tem 93 anos e, tal como o marido, trabalhou toda a vida para a família Coimbra de Castro Canelas. “Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”, afirma José Canelas, o filho de Fernanda Coimbra de Castro Canelas. “A Palmira é uma terceira avó dos nossos filhos”, diz, referindo-se a Bernardo, José e Luísa, os seus três filhos. “Eles entram na minha casa e ficam como se estivessem em casa. Vão ao frigorífico, tiram o que querem. A minha mulher arranja logo qualquer coisa para eles comerem”, diz Manuel, concluindo: “É como se fossem da família”. Este sentimento é partilhado pelos membros mais jovens da família Coimbra de Castro Canelas. “Um dia destes, um homem disse ao Bernardo que tinha acabado de ver um empregado dele, referindo-se a mim. O Bernardo disse: ‘Meu empregado, não! É meu avô!’”, conta Manuel, com um brilho nos olhos. Atualmente com 22 anos, Bernardo Canelas é trineto de João Coimbra, o primeiro patrão de Manuel. “Começou a trabalhar no tempo do meu bisavô, teve cá na geração do meu avô, na geração da minha mãe e na minha geração. Já tenho filhos e sobrinhos netos, portanto o Manuel já conheceu seis gerações da minha família”, explica José Canelas, que considera Manuel e Palmira “mais do que nossos colaboradores, são nossos amigos muito chegados e nossa família”. Quase 90 anos depois de ter começado a pastar ovelhas nas terras onde nasceu, Manuel Inácio de Oliveira continua ativo. Apesar de já não ter horários nem ordens para cumprir, cuida religiosamente da sua horta e gosta de estar a par dos trabalhos realizados na Quinta de Santo António. Na opinião de Bernardo Canelas, “o Manuel é uma pessoa especial, com uma juventude brutal”. Nós concordamos plenamente.

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