Caretos da Lagoa
Situada no concelho de Mira, a poucos quilómetros do mar, a aldeia de Lagoa distingue-se por uma tradição singular: o seu Entrudo. Todos os anos, homens e rapazes da terra dão vida a figuras misteriosas e assustadoras que percorrem as ruas do concelho em três momentos marcantes: o Domingo Magro, o Domingo Gordo e a Terça-feira de Entrudo. São os Caretos da Lagoa — símbolo da identidade cultural da Gândara.
A indumentária dos caretos é de cores garridas e rica em simbolismo. Inclui a saia tradicional da mulher solteira gandaresa, avental, cinta e camisa branca, com duas correias de cabedal cruzadas no tronco, onde se prendem campainhas e chocalhos. O disfarce completa-se com a “campina”, uma máscara de cores berrantes que se destaca pelos chifres retorcidos — normalmente de gado caprino — e pelas fitas coloridas em papel de seda.
Embora a origem desta tradição permaneça incerta, acredita-se que remonta a rituais de fertilidade de raízes ancestrais. O registo mais antigo conhecido dos Caretos da Lagoa é uma fotografia datada de 1940, onde surgem seis caretos de identidade desconhecida. Durante a segunda metade do século XX, a tradição enfraqueceu e chegou a desaparecer, devido sobretudo à emigração e à guerra colonial. No entanto, ressurgiu com vigor no final dos anos 80, graças ao empenho de Alírio Laranjeiro, a quem se deve o renascimento desta expressão tão enraizada na cultura local.
Apaixonado pelos Caretos da Lagoa desde criança, Alírio Laranjeiro manteve viva a tradição até emigrar para França, nos anos 70. Quando regressou definitivamente a Portugal, 18 anos depois, os caretos já não agitavam as ruas do concelho de Mira durante o Entrudo. Diante da extinção do grupo da sua terra, Alírio arregaçou as mangas e decidiu recomeçar do zero. Reuniu um grupo de crianças da aldeia na sua oficina de sapateiro e começou a ensiná-las a fazer “campinas”. Uma das regras dos Caretos da Lagoa dita que cada careto deve fazer a sua própria máscara, refletindo nela traços da sua personalidade. Quanto à indumentária, esta acabou por se uniformizar ao longo do tempo, embora, antigamente, as saias e restantes peças fossem de cores diversas e sem padrão definido.
Em poucos anos, Alírio Laranjeiro conseguiu transmitir a sua paixão pelos caretos a uma nova geração de crianças da Lagoa, fazendo renascer uma tradição ancestral. Quando faleceu, em 1994, os Caretos da Lagoa já eram um grupo de jovens orgulhosos das suas raízes e do seu Entrudo. Trinta anos depois, alguns desses jovens tornaram-se os membros mais antigos do grupo — como é o caso de José Moreira.
Sobrinho de Alírio Laranjeiro, José Moreira tinha apenas 9 anos quando saiu à rua com a sua primeira “campina”, feita pelo tio. Desde então, nunca mais deixou de ser um Careto da Lagoa. Ao lado do irmão, Sérgio Moreira, e de outros rapazes da aldeia, ajudou a manter viva a tradição que herdaram. Hoje, o grupo é composto por cerca de três dezenas de caretos, alguns já filhos dos membros mais antigos. É o caso de Gustavo, filho de José Moreira, que aos 2 anos já desfilava mascarado e que, atualmente, integra o grupo de crianças que dão continuidade à tradição. Três décadas após a morte de Alírio Laranjeiro, o seu legado continua a inspirar novas gerações — e a ecoar nas ruas da Lagoa, sempre que chega o Entrudo.
Seja no Domingo Magro, no Domingo Gordo ou na Terça-feira de Entrudo, os Caretos da Lagoa gostam de “lançar o caos” por onde passam — como diz José Moreira. Formado exclusivamente por homens e rapazes naturais da aldeia, o grupo veste saias e máscaras diabólicas, e anuncia a sua chegada com o som dos chocalhos e campainhas que trazem ao peito. Com comportamentos provocadores e irreverentes, fiéis à tradição, os caretos assustam moradores e visitantes, perseguem mulheres solteiras e incomodam — com humor — as casadas.
Quando não estão a pregar partidas, estão a conviver, comer e beber, sempre em ambiente de grande animação. Os laços de amizade e familiares que os unem, aliados ao orgulho que sentem por manter viva esta tradição, são a melhor garantia de que os Caretos da Lagoa continuarão, por muitos anos, a “lançar o caos” nas ruas do concelho de Mira.