Manuel Cruz

Situada no sopé ocidental da Serra da Arrábida, junto a uma baía abrigada dos ventos dominantes, que sopram do Norte e Noroeste, Sesimbra é uma terra com fortes ligações ao mar e à pesca. As condições favoráveis da baía proporcionaram, ao longo dos séculos, o desenvolvimento de uma intensa atividade piscatória. A primeira referência escrita à prática da pesca na região data de 1201, na Carta de Foral concedida por D. Sancho I, onde se estabelece que a taxa sobre o pescado seria de 1 soldo. Desde então, a pesca nunca deixou de ser uma das principais formas de sustento para os sesimbrenses. 

De pequena vila piscatória a um dos principais portos de pesca do país, Sesimbra cresceu com o mar no horizonte. Esse crescimento deve-se, em grande parte, aos seus pescadores,  sobre os quais Raúl Brandão escreveu, no livro Os Pescadores: “Conhecem a costa a palmo”. Manuel Cruz, o pescador mais antigo em atividade em Sesimbra, é um digno representante dessa linhagem.

Nascido no seio de uma família de pescadores, Manuel Cruz soube desde cedo que queria seguir os passos da família. “Comecei a ir para o mar com 13 anos”, recorda. Durante algum tempo, ainda conciliou a pesca com os estudos, até tirar a cédula marítima, aos 15 anos. A partir daí, integrou a tripulação do barco Praia Bela, composta inteiramente por membros da sua família, com o pai como mestre da embarcação. Desses tempos, lembra-se bem das jornadas a norte do Cabo Espichel, no chamado “mar do cabo feito”. “Chegávamos lá e largávamos o aparelho”, explica, referindo-se a uma das artes de pesca mais tradicionais de Sesimbra. O aparelho é composto por um conjunto de cabos e linhas — ou “talas”, como lhes chamam localmente — com anzóis iscados ao longo do comprimento. É uma arte de pesca considerada relativamente seletiva e com baixo impacto nos fundos marinhos. “Apanhávamos chaputa, goraz, albacora, pescada, peixe-espada branco... Havia muito peixe!”, conta, num tom nostálgico. 

Com o passar dos anos, o peixe-espada preto tornou-se o principal alvo dos pescadores sesimbrenses, incluindo da tripulação do Praia Bela. Até ao início da década de 1980, essa espécie não era capturada em Sesimbra. Apesar da profundidade das suas águas, ideais para a presença deste peixe, os pescadores locais não dispunham dos meios necessários para a sua captura. Tudo mudou quando Luís Ferreira, um antigo pescador madeirense, trouxe para Sesimbra o conhecimento das artes adequadas para a pesca do peixe-espada preto — até então exclusiva dos pescadores da Madeira. Atualmente, cerca de 300 pescadores de Sesimbra dedicam-se à captura desta espécie, sendo as embarcações locais responsáveis por mais de 95% do peixe-espada preto pescado em Portugal continental. Durante 14 anos, Manuel Cruz dedicou-se à captura desta espécie, sempre ao lado do pai e de outros familiares.

Quando o pai decidiu vender o barco, passou para a tripulação da barca Amor ao Ofício, que ainda hoje se encontra ancorada no porto de Sesimbra, sendo usada para atividades marítimo-turísticas. “Esta barca ia carregada de aiolas, de ambos os lados, desde a proa até à popa”, conta Manuel, apontando para a mais antiga barca de pesca do alto ainda existente em Sesimbra. “Íamos pescar para sul da costa da Galé. Antes de nascer o dia, já lá estávamos. Ao chegar, cada pescador saía na sua aiola para pescar. E, à hora de regressar, voltávamos todos para a barca”. Durante cerca de seis anos, integrou a tripulação da Amor ao Ofício. Depois disso, trabalhou ainda noutra embarcação, onde se dedicou à pesca de polvo, choco e lula. Em 1997, decidiu investir na sua própria embarcação: pagou 170 contos (cerca de 850 euros) a um carpinteiro naval para construir uma aiola, à qual deu o nome de Liberdade. É nesta embarcação que, desde então, tem feito a sua vida no mar.  

Típica de Sesimbra, a aiola é uma pequena embarcação de pesca artesanal que se destaca pela estabilidade, construção robusta, excelente navegabilidade e pelas cores vivas que a caracterizam, além da roda de proa acentuada. No passado, serviu como barco auxiliar das tradicionais “barcas do alto” e, atualmente, continua a ser utilizada por profissionais do palangre e da toneira, bem como por pescadores reformados e amadores. Todos os anos, a baía de Sesimbra acolhe a original Regata de Aiolas, a mais antiga competição desportiva do concelho. Embora nunca tenha participado, Manuel Cruz costuma emprestar a sua aiola a amigos que gostam de competir. O pescador orgulha-se das boas prestações da sua aiola na regata, mas, acima de tudo, sente-se realizado por contribuir para a preservação de um símbolo do património sesimbrense.  

Em 2009, Manuel Cruz deu entrada no pedido de reforma, mas nunca deixou de ser pescador profissional. Continuou a sair para o mar a bordo da Liberdade, capturando chocos, lulas e polvos. Há cerca de quatro anos, sofreu um acidente vascular cerebral hemorrágico que o afastou temporariamente da atividade. Assim que recuperou, regressou ao que mais gosta de fazer: pescar. Embora já não vá ao mar com a mesma frequência de outros tempos, continua a sair regularmente na sua aiola. 

No dia 31 de maio de 2023, a Câmara Municipal de Sesimbra homenageou-o com o título de “Pescador há mais tempo em atividade” em Sesimbra. Aos 79 anos, Manuel Cruz continua a ir todas as manhãs ao Porto de Abrigo de Sesimbra, mesmo que, na maioria dos dias, não vá para o mar. “Gosto de ir até ao armazém, conversar com o pessoal, ver como está a aiola”, conta. E acrescenta, com a sabedoria de quem conhece o mar como poucos: “Têm estado ventos de leste e sueste, que são os piores para a região de Sesimbra. Agora não convém ir ao mar”. 

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