Duarte Fradinho
A Fábrica de Porcelana da Vista Alegre foi fundada em 1824, em Ílhavo, por José Ferreira Pinto Basto, um homem à frente do seu tempo. Figura de destaque na sociedade portuguesa do século XIX, comerciante ousado e visionário, José Ferreira Pinto Basto adquiriu, em 1812, a Quinta da Ermida, perto de Ílhavo e à beira da Ria de Aveiro. Quatro anos depois, comprou a Capela da Nossa Senhora da Penha de França e os terrenos adjacentes. Pouco tempo depois, apresentou uma petição ao rei D. João VI para “erigir, para estabelecimento de todos os seus filhos, com igual interesse, uma grande fábrica de louça, porcelana, vidraria e processos químicos na sua quinta chamada de Vista-Alegre da Ermida”.
O nome Vista Alegre é uma homenagem à quinta onde tudo começou. Muito antes da fundação da fábrica, no final do século XVII, o bispo D. Manuel de Moura Manuel mandou construir a Fonte do Carrapichel para servir a quinta e a capela. A água dessa fonte era considerada medicinal, como revela a inscrição gravada no monumento: “Bebe pois, bebe à vontade. Acharás que é (muitas vezes) tão útil para a saúde quanto para a vista alegre”. Em 1 de julho de 1824, por alvará régio, D. João VI autorizou oficialmente o estabelecimento da Fábrica de Porcelana da Vista Alegre.
Nos primeiros anos de atividade, devido ao desconhecimento da composição da pasta de porcelana, a fábrica concentrou-se na produção de vidro e cerâmica “pó de pedra”. Paralelamente, investiu na contratação de mestres estrangeiros, como Victor Rousseau, que criou a escola de pintura da fábrica e possibilitou a formação de uma mão de obra local altamente especializada na produção de porcelana. A excelência do seu trabalho rapidamente conquistou reconhecimento e, em 1852, a Vista Alegre produziu a sua primeira baixela completa para a Casa Real Portuguesa, consolidando a sua reputação como uma marca de prestígio.
Ao longo dos anos, a fábrica cresceu e modernizou-se, sem nunca perder o compromisso com a qualidade e a inovação. Aliando tradição e modernidade de forma harmoniosa, sempre colocou o design no centro do processo criativo, trabalhando em parceria com uma vasta lista de criadores nacionais e internacionais de renome. Hoje, as peças da Vista Alegre marcam presença nas mesas de monarcas e governantes de todo o mundo, estando também representadas em instituições de prestígio internacional. De Ílhavo para o mundo, a Vista Alegre tornou-se um símbolo de excelência e inovação, consolidando-se como uma verdadeira embaixadora de Portugal além-fronteiras.
Quando fundou a Fábrica de Porcelana da Vista Alegre, José Ferreira Pinto Basto sabia que não estava apenas a criar uma fábrica. Desde a sua origem, a Vista Alegre foi um projeto social pioneiro e visionário. Consciente de que o sucesso do negócio dependia de uma mão de obra qualificada e motivada, Pinto Basto implementou uma visão empresarial profundamente inspiradora. Ainda em 1824, deu início à construção do bairro operário, que veio responder à necessidade de fixar a população fabril. Foram erguidas habitações para os primeiros moradores — vidreiros e cerâmicos provenientes de várias regiões do país — além de um conjunto de infraestruturas essenciais: refeitório, creche, posto médico, barbearia, teatro e até um clube de futebol, o Sporting Clube da Vista Alegre. Foi também criado o corpo de Bombeiros Privativos da Vista Alegre, que recentemente celebrou 141 anos, sendo o corpo privado mais antigo do país. A banda filarmónica, fundada em 1826, deu origem a uma formação musical que permitiu aos trabalhadores aprender a tocar diversos instrumentos. Autossustentável, esta comunidade contava ainda com uma cooperativa onde era possível adquirir produtos essenciais a preços acessíveis, incluindo os provenientes da quinta da família Pinto Basto na propriedade da Vista Alegre. Nas escolas da fábrica, os trabalhadores recebiam formação artística, com ensino especializado nas várias técnicas envolvidas na produção de porcelana.
Com um conjunto de regras próprias, distintas do resto do país, o Lugar da Vista Alegre foi o local de vida, trabalho e lazer de sucessivas gerações de habitantes. A criação de uma comunidade com forte sentido de pertença foi decisiva para o sucesso da fábrica. Ao longo de dois séculos, muitas pessoas contribuíram para construir e manter o legado da Vista Alegre, preservando o ideal do seu fundador. Uma dessas pessoas é Duarte Fradinho, a prova viva de que a utopia de José Ferreira Pinto Basto permanece atual há 200 anos.
Duarte Fradinho nasceu em 1961, no número 8 da Rua Engenheiro João Theodoro, bem no coração do bairro operário da Fábrica de Porcelana da Vista Alegre. Filho, neto e bisneto de trabalhadores da fábrica, Duarte vive há 63 anos no “paraíso”, como o próprio gosta de dizer. “O meu avô, Duarte de Almeida, foi mestre-geral da fábrica. A minha mãe contava que, quando eu tinha 5 ou 6 anos, ela acordava às seis da manhã para abrir os portões da fábrica e deixar os trabalhadores entrarem. Por isso, a minha ligação à Vista Alegre é muito antiga”, explica Duarte Fradinho, mais conhecido como Duarte Zé.
Uma das suas primeiras memórias de infância é a de levar a refeição ao pai, que trabalhava como contramestre forneiro, e almoçarem ou jantarem juntos perto dos fornos. “Geralmente era bacalhau”, recorda Duarte, numa região marcada pela forte tradição na pesca desse peixe. “Quando éramos jovens, a vida aqui no bairro social era fantástica. Éramos cerca de cinquenta jovens e nunca tínhamos horas mortas”, recorda, prosseguindo: “Inventávamos as nossas brincadeiras e corríamos pelas ruas do bairro. Nas férias grandes, todos os caminhos levavam à nossa piscina natural, o rio Boco, onde aprendíamos a nadar. Os mais velhos ensinavam os mais novos, e o ‘exame’ para provar que sabíamos nadar era atravessar o rio e voltar. Passávamos o dia inteiro no rio, onde fazíamos todo o tipo de brincadeiras”. Quando precisavam de saciar a sede, os jovens iam até à Fonte do Carrapichel, um monumento que ocupa um lugar especial na história da Vista Alegre.
“À medida que crescíamos, entrávamos nas várias atividades desportivas e culturais. Havia o grupo de teatro, ao qual quase todos estávamos ligados, o grupo coral, a banda filarmónica e o grupo desportivo da fábrica, o nosso querido Sporting Clube da Vista Alegre”, conta Duarte, concluindo: “Fazíamos parte de tudo isso”. No âmbito escolar, os filhos dos trabalhadores da Vista Alegre começavam pela creche da fábrica, inaugurada em 1944, e depois seguiam para o ensino primário fora do bairro. Duarte estudou na Escola Primária de Chousa Velha, em Ílhavo, e depois na Escola Secundária José Estêvão, em Aveiro. Apesar de estar fora do seu “paraíso”, nunca escondeu o orgulho pelas suas raízes. “Tivemos sempre excelentes condições. Quando estudava em Aveiro, havia um autocarro contratado pela empresa que nos levava todos os dias para a escola e depois trazia de volta. No autocarro só entravam os filhos dos funcionários da Vista Alegre. Os meus colegas, muitos deles de Aveiro, perguntavam de onde eu era, e eu respondia: sou da Vista Alegre! Eles ficavam impressionados”, conta, sorrindo.
Após concluir o ensino secundário, Duarte ingressou na Fábrica de Porcelana da Vista Alegre, começando na secção de produção. “Durante o primeiro ano e meio, trabalhei na produção, a amassar barro e a fabricar pratos, travessas, chávenas e outras peças. Depois, passei para a secção de pintura. Na Vista Alegre, existem várias técnicas decorativas, como serigrafia, aplicação de decalques, pintura à pistola, pintura à mão e filagem. Eu especializei-me na pintura à pistola, aplicando fundos nas peças com essa técnica”, explica Duarte, que exerceu esta função durante cerca de 25 anos.
“Enquanto trabalhava na pintura, começaram a convidar-me para realizar visitas guiadas à fábrica, ao museu e ao lugar. Inicialmente, fazia isso aos fins de semana, até que um dia me convidaram para integrar a equipa do museu a tempo inteiro. Então, deixei a pintura à pistola e passei a trabalhar exclusivamente para o Museu da Vista Alegre”, conta, sublinhando que esteve ligado ao museu por cerca de 15 anos. Em 2022, devido a um problema de saúde incapacitante, Duarte foi forçado a reformar-se por invalidez. “Custou-me muito porque adorava o meu trabalho. O Museu da Vista Alegre recebe visitantes de todo o mundo e, como gosto de conhecer pessoas diferentes, todos os dias tinha novas experiências”, diz com nostalgia.
Ao longo dos anos, Duarte Fradinho manteve-se profundamente ligado às atividades culturais e desportivas do Lugar da Vista Alegre. No teatro, desempenhou múltiplos papéis: foi ator, encenador, um dos fundadores do Grupo de Teatro Amador Ribalta — herdeiro do antigo Grupo Cénico da Fábrica da Vista Alegre — e presidente do próprio grupo. “Conseguimos levar o nosso teatro além-fronteiras, nomeadamente às comunidades portuguesas residentes no estrangeiro”, relata Duarte, que participou em inúmeras peças, entre as quais Modelo de Virgem, Herança do Tio Januário e O Pasteleiro Guloso. No desporto, integrou as equipas de juvenis e juniores do Sporting Clube da Vista Alegre e, mais tarde, desempenhou várias funções diretivas: foi tesoureiro, secretário, vogal e até presidente do seu clube do coração.
A dimensão social e comunitária da Vista Alegre é, ainda hoje, uma das marcas distintivas desta empresa com dois séculos de história. “A minha mãe dizia que, quando nascia uma criança no Lugar da Vista Alegre, toda a comunidade se centrava nessa casa. Quando alguém falecia, todos estavam presentes para dar apoio. Era assim que se vivia na Vista Alegre”, recorda Duarte, sublinhando o espírito de entreajuda. “Não houve uma única casa neste lugar onde eu não tivesse almoçado ou jantado”. Os valores de proximidade e o ambiente familiar entre patrões e trabalhadores sempre fizeram parte da cultura da Vista Alegre. “Havia uma verdadeira relação familiar, mesmo no meu tempo. Foram seis gerações da família Pinto Basto, e eu ainda conheci a última. Os filhos dos administradores vinham passar férias à casa da administração — o chamado palácio — e conviviam connosco diariamente. Apesar de pertencerem a uma família com grande poder económico, eram pessoas muito simples”, conta Duarte, destacando a visão humanista de José Ferreira Pinto Basto, o fundador da fábrica. “Aqui na Vista Alegre, quando nos referimos ao fundador, não dizemos José Ferreira Pinto Basto — é o avô Zé. Ainda hoje é assim que o conhecemos”, conclui, com um sorriso nos olhos.
Duarte Fradinho teve a possibilidade de viver e trabalhar noutros lugares, mas nunca quis abandonar o Lugar da Vista Alegre. “Tenho um irmão que vive no Porto e chegou a convidar-me para trabalhar na empresa dele. Mas nunca aceitei, porque estava na minha zona de conforto. Da minha casa ao trabalho eram cinco minutos a pé. Além disso, não precisávamos de sair da Vista Alegre para nada — tínhamos tudo aqui”, explica.
Também não precisou de sair para encontrar o amor da sua vida. Margarida, sua companheira de há 35 anos, nasceu a poucos metros da casa de Duarte. “Só tínhamos um muro a separar as nossas casas. Naquele tempo, andava a namoriscar aqui e ali, e quando tinha algum problema, desabafava com a Margarida. Apesar de ser três anos mais nova, era a minha confidente”, recorda. Um dia, começou a receber cartas de amor anónimas. “Um colega descobriu que era ela quem me escrevia. Nunca me tinha apercebido de que sentia algo mais por mim além da amizade. Nessa noite, sentados no muro, perguntei-lhe se era ela quem me andava a escrever cartas. Ficou muito vermelha — e foi aí que começámos a namorar. Namorámos cerca de 10 anos e casámos em 1989. Já lá vão 35 anos de casamento”, conta Duarte, enquanto afaga a sua cadela Daisy.
Atualmente, Margarida trabalha no Museu da Vista Alegre, exercendo o mesmo tipo de funções que Duarte desempenhou durante 15 anos. O casal tem um filho, hoje com 33 anos, que decidiu trilhar um caminho diferente e trabalha na área das novas tecnologias da comunicação.
Em tempos, todas as casas do bairro operário da Vista Alegre eram ocupadas por famílias de trabalhadores. Hoje, porém, apenas cerca de um quarto continua habitado. “Algumas casas ainda são ocupadas por funcionários da fábrica, mas a maioria dos residentes já está aposentada”, explica Duarte, revelando que parte do bairro operário foi integrada ao Montebelo Vista Alegre Ílhavo Hotel, uma unidade de cinco estrelas inaugurada em 2015, no Lugar da Vista Alegre.
“A grande diferença em relação à minha infância e adolescência é que hoje não há crianças no bairro”, lamenta. Apesar de ser evidente o sentimento de gratidão à administração da Vista Alegre por tudo o que foi criado naquele lugar, Duarte não hesita em afirmar: “Se não fossem as pessoas, especialmente os funcionários, a dar vida e dinâmica aos espaços construídos pela administração, este lugar não teria alma. As pessoas fazem os lugares... Onde foi que já ouvi isto?”, conclui, esboçando um sorriso cúmplice.
Todos os anos, no primeiro fim de semana de julho, realiza-se a Festa da Vista Alegre, em honra de Nossa Senhora da Penha de França, que coincide também com a celebração do aniversário da Fábrica de Porcelana da Vista Alegre. Com um programa diversificado — cultural, recreativo, religioso, desportivo e musical — o evento atrai milhares de visitantes e torna-se, ano após ano, um ponto de encontro para antigos trabalhadores da fábrica. “É sempre uma grande festa quando a malta se junta toda, parece a Vista Alegre de há 50 anos”, comenta Duarte, acrescentando: “Este ano foi ainda maior, por causa da celebração dos 200 anos da Vista Alegre”. Durante as festividades, realiza-se também um almoço dedicado aos reformados da Vista Alegre, momento em que são atribuídas condecorações aos funcionários com 25, 40 e 50 anos de serviço. Há três anos, Duarte foi homenageado pelos seus 40 anos de dedicação à fábrica.
Prestes a completar 64 anos, Duarte Fradinho já não trabalha na Vista Alegre, mas continua a ser frequentemente procurado para entrevistas e reportagens sobre a empresa. “Não consigo desligar-me da Vista Alegre, nem do Lugar da Vista Alegre. Mas também não quero. Gosto de dar a conhecer este lugar. Foi aqui que cresci, trabalhei, convivi, e aprendi a ser homem — com tudo o que isso implica, com coisas boas e outras menos boas. Foram 63 anos de vida que me moldaram e que explicam aquilo que sou hoje, e o que sinto por este lugar. É um lugar mágico!”. Sentado sob a bela-sombra do bairro operário da Vista Alegre — uma árvore imponente, testemunha de várias gerações — Duarte Zé partilha, com um sorriso: “Costumo dizer a todos os visitantes que espero que, quando saírem daqui, saiam com a vista muito mais alegre”.