António dos Santos
António Manuel Soares dos Santos nasceu em Peniche, numa casa da Rua Vasco da Gama, a poucos passos da Ribeira Velha, o antigo porto de abrigo da povoação. Filho de um pescador e de uma peixeira, António começou desde muito jovem a lutar pela vida. “Antes de ir para a escola, logo de manhã cedo, ia para a ribeira com outros miúdos tentar ganhar algum dinheiro. Roubávamos peixes dos barcos da pesca e vendíamos às pessoas que andavam a comprar peixe”, recorda António, acrescentando que “havia barafunda quando nos apanhavam a roubar, mas naquela altura éramos leves”.
Aos 14 anos, deixou a escola e tornou-se pescador, seguindo os passos do pai e do avô. Os primeiros anos foram dedicados à pesca ao aparelho, ou palangre — uma técnica artesanal que consiste numa linha principal com várias linhas secundárias mais curtas, cada uma terminada com um anzol. Quando chegou a hora do serviço militar, a mãe de António pediu a alguém da Nazaré que o levasse para a pesca do bacalhau, para evitar que os dois filhos fossem para a Guerra do Ultramar ao mesmo tempo. Assim, poucos anos depois de o irmão mais velho partir para Angola, António juntou-se à tripulação do navio João Corte Real.
A bordo deste arrastão bacalhoeiro, construído nos Estaleiros da Companhia União Fabril (CUF), António rumou aos mares frios da Terra Nova para a pesca do bacalhau. Na sua memória, permanece gravada a dureza da faina maior— nome dado à pesca do bacalhau pela frota portuguesa. “Se soubesse o que sei hoje, nunca teria ido para a pesca do bacalhau. O problema não era o trabalho, mas sim o frio. Era pior do que estar dentro de uma câmara frigorífica. O peixe congelava assim que caía no convés”, recorda António, que enfrentou duas longas e penosas campanhas de sete meses cada.
Depois de escolher a faina do bacalhau para escapar à guerra colonial, António acreditava que nada poderia ser pior que o frio do Atlântico Norte. Pouco tempo depois da Revolução de 25 de abril de 1974, regressou a Portugal e dirigiu-se à Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, para cumprir o serviço militar. “Disseram-me que podia ir para casa e que depois me chamariam. Passada cerca de uma semana, recebi um postal a dizer que estava dispensado do serviço militar”, conta, soltando um suspiro de alívio.
De regresso a Peniche, António continuou a trabalhar na pesca ao aparelho até que o peixe, incluindo espécies como goraz, pescada e chaputa, começou a escassear. Durante esse período, trabalhou na embarcação do que considera “o melhor mestre de Peniche na arte do aparelho”, Alberto Jorge Conchacha Belo, conhecido como Mestre Beta. “Foi um tio que me arranjou esse trabalho. Estava em outro barco a ganhar pouco e passei a ganhar mais”, lembra, antes de acrescentar: “Aprendi muito com esse mestre. Quando ele adoecia, confiava em mim para governar um barco de 20 metros. Trabalhei com o Mestre Beta muitos anos, mesmo depois de me casar. Foi aí que me orientei”.
Depois da pesca ao aparelho, António mudou para a arte do cerco, uma técnica que consiste em largar a rede para cercar o peixe. “Trabalhei como contramestre em vários barcos. Como era um gajo abelhudo e sabia o que fazia, os melhores mestres do cerco de Peniche chamavam-me para trabalhar com eles”, conta António Manuel Soares dos Santos — ou simplesmente Toneu, como é conhecido na cidade. Quando tinha 36 anos, surgiu a oportunidade de fazer uma campanha de pesca ao carapau em Angola. “Só fiz uma viagem, trouxe a carteira cheia e já não quis ir mais. Já tinha aquilo que queria”, diz, referindo-se ao dinheiro que lhe permitiu comprar o seu primeiro barco. “Comecei com uma lancha de fibra de 5,20 metros e motor de popa de 8 cavalos. Depois vendi essa lancha e comprei o Pai Herói, que já era um barco maior, com cerca de 7 metros”, conta António, recordando o início da sua carreira como mestre e patrão.
Com mais de 20 anos de experiência no mar, em diferentes regiões do Oceano Atlântico, Toneu limitou-se a aplicar nas suas embarcações todo o conhecimento que acumulou ao longo do tempo. “Já fazia grandes pescas com o Pai Herói, e todos me diziam que podia ganhar muito mais dinheiro se tivesse um barco maior. Isso fez-me perder a cabeça e fui até ao Algarve comprar uma embarcação de 9 metros, chamada Salmão. Custou quatro mil contos (20 mil euros)”, recorda o pescador. Mais tarde, adquiriu o Mestre Tó, um barco de 10,65 metros, com o qual continuou a pescar até se reformar, em 2009.
Ao longo de todos esses anos, foram raros os dias em que a embarcação de Toneu ficou em terra, mesmo durante os meses rigorosos de inverno. “Nunca tirei férias. Estava quase sempre no mar. Se perguntarem a quem me conhece, todos confirmam. A prova disso é que a lota de Peniche só abria para mim — eu era o único no mar, e a lota tinha de abrir”, conta Toneu, que viveu inúmeras experiências inesquecíveis no oceano. Numa dessas jornadas a bordo do Salmão, enfrentou uma verdadeira odisseia. “Apanhei uma nortada fortíssima ao largo de Cascais. Parti à meia-noite e só cheguei a Peniche às duas da tarde. O mar entrava pela proa e saía pela ré”, recorda o mestre, que fez toda a viagem sozinho na casa do leme.
Apesar disso, Toneu prefere guardar na memória os dias em que o mar lhe sorriu. “Houve um dia em que apanhei mais de quatrocentos quilos de goraz em cinco horas. Nunca tinha visto gorazes tão grandes. Parei de apanhar às 14h porque a maré virou — são as marés que apanham o peixe”, afirma com convicção. Mesmo sabendo da imprevisibilidade da pesca, Toneu nunca deixou de fazer a sua parte. “Na temporada 1999/2000, fiz 123 ‘marés de mar’ [dias de pesca]. A média era cerca de 80”, conta, referindo-se à época em que se tornou campeão nacional de pesca artesanal na categoria de barcos de 8 a 12 metros. “Fiz quarenta e quatro mil contos naquele ano. Ninguém tinha feito tanto na minha categoria”, declara com orgulho.
Com uma tripulação de sete membros, além de Toneu, e mais quatro ou cinco em terra para ajudar a safar a arte, o Mestre Tó percorreu milhares de milhas em busca dos melhores pesqueiros. “Trabalhei muito fora de Peniche. Passei verões inteiros na zona de Cascais, fazendo cerca de 44 milhas para lá e outras 44 para cá todos os dias”, lembra Toneu, acrescentando que também há “pesqueiros de categoria” junto aos ilhéus dos Farilhões, perto de Peniche.
Depois de mais de quatro décadas no mar, Toneu decidiu pôr fim à sua carreira de pescador, vendendo o Mestre Tó e todas as artes de pesca que possuía. Já lá vão 16 anos desde então, mas o seu discurso continua a refletir a mesma ambição e confiança que marcaram todo a sua trajetória. “Se tivesse conseguido comprar um barco maior, ainda hoje estava a trabalhar. Quanto maior fosse a embarcação, melhor — dava para levar mais pessoal, largar mais arte… mas na altura não tinha o dinheiro necessário”, afirma, num tom de leve frustração. Apesar desse lamento, Toneu é, claramente, um homem realizado — em paz com o passado e de bem com a vida.