Maria Patriarca
Natural de Monte Joana, uma pequena aldeia situada na ilha de Santo Antão, em Cabo Verde, Maria Patriarca viveu até aos 19 anos rodeada pelas montanhas que caracterizam a ilha mais setentrional do arquipélago. Embora tenha começado a trabalhar desde cedo, Maria também viveu uma infância marcada por muitas brincadeiras.
A sua vida decorreu de forma tranquila, sem grandes sobressaltos, até cerca de dois meses após o 25 de abril de 1974, quando embarcou num navio com destino a Lisboa. Dessa viagem, que durou dezasseis dias, Maria guarda com especial carinho os dias passados no Funchal. “Antes de chegarmos a Lisboa, o barco fez uma paragem de quatro dias na ilha da Madeira. Ali, senti-me como se estivesse na minha terra. Havia água a correr entre as plantas, tal e qual como em Santo Antão”, recorda com nostalgia. Mas à chegada à capital portuguesa, Maria deparou-se com uma realidade muito diferente daquela que conhecia. “Foi um choque enorme. Saí de casa da minha mãe e vim para Lisboa. A minha patroa esperava-me em Alcântara, e dali fui diretamente para a casa dela”, recorda, referindo-se àquele que considera o “pior dia” da sua vida. No entanto, Maria ainda não sabia que o verdadeiro desafio da sua nova vida estava apenas a começar.
Apesar da liberdade que Portugal começava a viver após o 25 de Abril, Maria viu-se mergulhada numa rotina marcada pela clausura e opressão. Durante cerca de dois anos e meio, viveu na Avenida Manuel da Maia, em Lisboa, uma realidade dura e profundamente distinta daquela que imaginara ao deixar a sua terra natal. Trabalhando como empregada interna, enfrentou humilhações e privações, sem direito a folgas nem férias, num quotidiano exaustivo: “sem hora para deitar, mas sempre para levantar”. O único tempo livre que tinha era ao domingo, entre as 17h e as 19h — uma janela curta e rigidamente controlada. Bastou-lhe um pequeno atraso para sentir as consequências de não cumprir esse horário à risca. “Cheguei um pouco depois das 19h, porque tinha ido à Feira Popular com as minhas primas. A senhora estava à janela, viu-me lá de cima, mas não abriu a porta. Deixou-me a dormir na escada”, recorda. “O 25 de Abril ainda era recente”, sublinha Maria Patriarca, num esforço para contextualizar esse e outros episódios de humilhação que teve de suportar. Para se libertar daquele ambiente de subjugação, acabaria por se rebelar contra a autoridade da patroa, chegando mesmo a recorrer à “malcriação”, como a própria admite. Foi ao enfrentar essas dificuldades que Maria aprendeu a resistir e a encontrar a sua voz. Da dor fez força, e dessa força nasceu um lema que ainda hoje carrega com firmeza: “Se caio hoje, amanhã levanto-me”.
Depois de dois anos e meio marcados pela dureza e pela ausência de liberdade, a vida de Maria começou, finalmente, a mudar. Ao começar a trabalhar para outra família, que vivia no Restelo, descobriu pela primeira vez, desde que deixara Cabo Verde, o verdadeiro significado de folgas e férias. Aproveitava esse tempo de liberdade para desfrutar da Feira Popular, agora sem restrições de horário, para passear com as amigas no Jardim da Estrela ou para frequentar casas onde se faziam festas animadas ao som da música cabo-verdiana. Foi numa dessas festas, em 1981, que conheceu aquele que viria a ser o seu marido, também natural de Santo Antão. Dois anos depois, ainda ao serviço da família do Restelo, nasceu o seu primeiro filho, Hernâni. Pouco tempo mais tarde, Maria e o marido mudaram-se para o bairro do Alto da Cova da Moura, no município da Amadora.
Antes de se dedicar à restauração, Maria Patriarca já trazia consigo uma bagagem sólida de conhecimentos de cozinha, adquiridos ao longo dos anos em que trabalhou como empregada interna, bem como das aprendizagens informais durante a infância e adolescência em Santo Antão, onde teve os primeiros contactos com a culinária tradicional cabo-verdiana. Essa base revelou-se fundamental quando surgiu a oportunidade de abrir o seu próprio restaurante. Maria hesitou, receosa dos riscos e incertezas que tal decisão implicava, mas acabou por aceitar o desafio. Alugou um espaço na Rua de São Tomé, no bairro do Alto da Cova da Moura, onde nasceu a Churrasqueira Africana. O restaurante rapidamente se destacou e ficou conhecido entre os clientes como “Coqueiro” — alcunha do marido de Maria, que acabou por dar identidade ao espaço.
Quatro anos depois, o casal transferiu o negócio para a Rua dos Reis, inaugurando um novo restaurante com o nome pelo qual já era amplamente conhecido: O Coqueiro. Situado num bairro marcado por uma forte presença da comunidade cabo-verdiana — por vezes apelidado de “a maior cidade cabo-verdiana em Portugal” — O Coqueiro tornou-se um verdadeiro símbolo cultural e gastronómico. O seu prato mais emblemático é a cachupa, especialidade nacional de Cabo Verde, que continua a atrair clientes de dentro e fora da comunidade.
Com raízes profundamente entrelaçadas na cultura do arquipélago, a cachupa reflete a história e as influências de Cabo Verde, apresentando variações de receita consoante a ilha. A versão de Maria Patriarca carrega a identidade de Santo Antão, a sua terra natal. O ritual começa na véspera, com os feijões catarino, pedra e congo deixados de molho em água fria. No próprio dia, juntam-se o milho, as hortaliças, os enchidos e as carnes, dando origem a uma cachupa tradicional. Para quem prefere uma versão mais elaborada, Maria Patriarca também confeciona a cachupa rica. Além disso, prepara cachupa de atum — uma adaptação da versão tradicional, em que o atum substitui a carne — e, quando solicitado, uma versão vegetariana.
As influências cabo-verdianas na cozinha do restaurante não se limitam à cachupa. Estão igualmente presentes em pratos como o guisado de galinha com massa de milho e mandioca. Para além da tradição de Cabo Verde, Maria Patriarca também se aventura por outras cozinhas africanas de língua portuguesa: a moamba de galinha, especialidade da culinária angolana, é um dos destaques da casa. Já a gastronomia portuguesa marca presença com pratos como o bacalhau com natas e o polvo à lagareiro, revelando a versatilidade e a riqueza da sua cozinha. “Todos os dias temos pratos diferentes. Não é por acaso que as pessoas vêm, temos coisas que as pessoas gostam”, afirma Maria Patriarca, enquanto prepara uma mousse de camoca, uma sobremesa típica de Cabo Verde.
Ao longo dos anos, a fama do restaurante O Coqueiro ultrapassou as fronteiras do bairro e do próprio concelho da Amadora, atraindo clientes de várias partes do país. O restaurante ganhou projeção nacional em 2016, quando foi visitado pela primeira vez pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Desde então, regressou em mais duas ocasiões, primeiro acompanhado por Jorge Carlos Fonseca e, mais tarde, por José Maria Neves, ambos Presidentes da República de Cabo Verde. A galeria de clientes ilustres vai muito além das figuras de Estado — basta olhar para as paredes do restaurante, onde se destacam fotografias de personalidades famosas de diferentes áreas, da música à política, passando pelo desporto. Entre esses nomes está o músico luso-cabo-verdiano Dino D’Santiago, cliente e amigo próximo da família Patriarca, que já convidou Maria várias vezes para confecionar a sua célebre cachupa em eventos de prestígio.
Durante muitos anos, O Coqueiro distinguiu-se não apenas pela sua cozinha, mas também pela música ao vivo que animava a casa aos fins de semana, enchendo o restaurante de clientes e de vida. No entanto, com a chegada da pandemia, essa tradição foi interrompida. Atualmente, os músicos são contratados apenas em ocasiões especiais ou quando os clientes o solicitam. Também a equipa do restaurante sofreu alterações ao longo do tempo: se noutros tempos chegaram a ser cerca de dez pessoas, hoje são apenas cinco — uma redução que contrasta com o aumento do número de clientes. Além do filho e da nora, Maria Patriarca conta com o apoio diário de uma funcionária e, aos fins de semana — altura de maior afluência —, com a ajuda de outra colaboradora que reforça a equipa nesses dias mais movimentados. O restaurante está aberto para almoços e jantares e, por vezes durante a tarde, Maria Patriarca ainda prepara alguns petiscos para os clientes que por ali passam.
Mesmo com uma agenda preenchida, a luso-cabo-verdiana encontrou, há cerca de dez anos, tempo e energia para concretizar um sonho de infância: aprender a ler e escrever. “De cinco irmãos, fui a única que não foi à escola. Na altura era assim. Toda a minha vida quis muito aprender a ler”, conta. Entre a preparação de almoços e jantares no restaurante e as responsabilidades familiares, conseguiu cumprir esse objetivo numa escola na Damaia, onde concluiu o 4.º ano de escolaridade.
Há seis anos, o percurso de Maria Patriarca na restauração foi reconhecido com o Galardão de Mérito Mulheres Empreendedoras Europa & África, na categoria de Gastronomia. No diploma que recebeu, pode ler-se: “Atestação atribuída à Chef Maria Patriarca”.
Mais de cinquenta anos depois de ter chegado a Portugal, tímida e assustada, Maria olha para trás com orgulho e esperança. Deseja que a sua história inspire outras mulheres do bairro do Alto da Cova da Moura a acreditarem em si e a não desistirem dos seus objetivos. “É preciso lutar para chegar a algum lado. Às vezes, fico a pensar na minha vida e nem eu sei como é que foi. Posso apenas dizer que fui fazendo as coisas”, resume, com a serenidade de quem venceu pela força do trabalho, da persistência e da coragem.
Embora tenha atingido a idade da reforma há já alguns anos, Maria não dá sinais de querer abrandar. Depois de mais de duas décadas a partilhar a gerência do restaurante com o marido, passou o testemunho ao filho mais velho, há cerca de cinco anos. “Enquanto puder, vou estar aqui a ajudar o meu filho. Mas também quero ter saúde para ir passear com o meu marido, porque adoro viajar”, afirma. Hoje, visita Cabo Verde todos os anos e já concretizou um dos sonhos antigos: regressar à ilha da Madeira — lugar que guarda com carinho desde a sua primeira passagem, em 1974, e que continua a ocupar um espaço especial na sua memória. Além das viagens, faz questão de acompanhar de perto a educação dos cinco netos, dividindo-se entre a família, o restaurante e os pequenos prazeres da vida.
Trinta anos após a sua abertura, O Coqueiro mantém-se firme, fiel às raízes e ao espírito que lhe deram origem. O restaurante continua a ser um espaço de encontro, convívio e celebração, honrando, todos os dias, a morabeza — palavra cabo-verdiana que exprime como poucas outras a hospitalidade, a ternura e a arte de bem receber. Por detrás dessa casa cheia de vida, continua a estar Maria Patriarca: mulher de coragem inabalável, que enfrentou desafios, superou obstáculos e construiu, com trabalho e determinação, um legado que inspira e dignifica a força das suas raízes e da sua comunidade.