José Botas
Escaroupim é uma pequena aldeia piscatória situada no concelho de Salvaterra de Magos, no distrito de Santarém. Fundada por pescadores oriundos da região de Vieira de Leiria, na década de 1930, mantém-se como um dos últimos bastiões da cultura avieira no Ribatejo.
Foi em meados do século XIX que se iniciou um dos maiores movimentos migratórios internos da história de Portugal. A escassez e a pobreza, agravadas pela impossibilidade de pescar no mar durante o inverno, levaram muitos pescadores a procurar sustento nas margens do Tejo. A maioria vinha da Praia da Vieira, e alguns acabaram por trocar definitivamente o mar pelo rio. Ficaram conhecidos como os Avieiros do Tejo.
Apelidados de “ciganos do rio” por Alves Redol, no livro Os Avieiros, estes pescadores criaram uma cultura ribeirinha com características muito próprias. A cultura avieira reúne um conjunto de saberes e tradições únicas no país — das construções palafíticas às embarcações típicas, passando pela gastronomia e pelas artes de pesca. A identidade avieira sobreviveu ao passar das gerações e continua presente nas margens ribatejanas do Tejo, onde ainda persistem algumas aldeias. Entre elas, sobressai Escaroupim, provavelmente a mais bem preservada. É lá que se encontram o Museu “Escaroupim e o Rio”, dedicado à memória das comunidades ribeirinhas do Tejo, e o Núcleo Museológico da Casa Típica Avieira, que preserva o modo de vida tradicional desta cultura.
Nos dias de hoje, a cultura avieira no Escaroupim continua viva graças ao esforço de algumas pessoas que se dedicam a preservar o legado das gerações passadas. José Botas é um dos legítimos herdeiros dessa herança, que mantém viva no quotidiano, através das suas memórias, do seu conhecimento e da sua ligação profunda ao Tejo.
Neto de pescadores vindos de Vieira de Leiria, que se fixaram nas margens do Tejo no início do século XX, José nasceu em 1968, numa modesta barraca de madeira na aldeia piscatória de Escaroupim. “Segundo a minha mãe, fui para o barco com dois meses — e por lá andei até aos 14 anos”, conta José.
Conhecida como bateira avieira, a embarcação típica dos pescadores do Tejo era muito mais do que um simples instrumento de trabalho — servia também de casa para toda a família. No caso de José, foi a bordo desse barco que passou a infância, acompanhando os pais nas lides da pesca e navegando pelas águas do rio. Saía apenas para ir à escola, brincar com outros filhos de pescadores ou, de tempos a tempos, visitar a sua aldeia natal.
A vida a bordo exigia uma organização rigorosa do espaço, levando a que o interior da bateira avieira fosse dividido em três áreas distintas. Na proa, coberta por um toldo — ou “tolde”, como era conhecido localmente — ficava o quarto da família, oferecendo algum abrigo e privacidade. Ao centro, a “emparadeira” servia de cozinha improvisada, onde se preparavam as refeições. Já a ré era reservada às redes, ao pescado e ao material de trabalho, funcionando também como oficina de pesca.
José recorda que começou a ajudar os pais desde muito novo. “Nos tempos da escola primária, acordava por volta das seis da manhã para ajudar o meu pai a lavar as redes, enquanto a minha mãe ia para o mercado vender o peixe apanhado na noite anterior”, conta. “Depois de lavar as redes, tomava o pequeno-almoço no barco, lavava as mãos, vestia-me e ia para a escola. Às 16h, quando saía, fazia uma hora de caminho até à Boca da Vala, em Salvaterra de Magos, para me juntar aos meus pais. Assim que chegava ao barco, fazia logo os trabalhos da escola para depois ter tempo de brincar com o meu primo e outros miúdos. À noite, enquanto eu dormia, os meus pais passavam grande parte do tempo a pescar”. José concluiu o ensino primário no Escaroupim e frequentou os 5º e 6º anos em Salvaterra de Magos, tendo sempre o Tejo como morada.
Em 1982, com apenas 14 anos, decidiu seguir o conselho do pai, que não queria vê-lo seguir a dura vida de pescador. “Para sofrer, já bastamos nós”, dizia-lhe. Durante dois anos, José trabalhou como servente de pedreiro ao lado do irmão mais velho, pedreiro de profissão. No entanto, a recessão económica, que em 1984 afetou o setor da construção, levou o irmão de José a emigrar em busca de melhores oportunidades e obrigou José a regressar ao Tejo, retomando a pesca ao lado dos pais.
Pouco tempo depois, um amigo da família que trabalhava na Idal (hoje Sugal Group), uma importante empresa agro-industrial especializada em derivados de tomate, convidou José para trabalhar na campanha do tomate daquele ano. Cerca de dois meses após o fim da campanha, já de volta à pesca, José foi convidado a integrar a equipa da Idal a tempo inteiro. Desde então, passaram-se mais de 40 anos, e José continua a dedicar-se ao trabalho com a mesma paixão de quando começou. “Adoro aquilo que faço”, afirma, lembrando que passou por várias funções na empresa até chegar ao cargo de coordenador da cozinha industrial — “é lá que se fazem todos os molhos”, explica José Botas. “Este ano, estamos a comemorar os 80 anos da marca Guloso”, revela, com orgulho no papel que desempenha na linha de produção do segundo maior produtor mundial de concentrado de tomate.
Depois de entrar para a Idal, José continuou a ajudar o pai na pesca, especialmente após a mãe ter sido diagnosticada com Alzheimer — doença que a afetou durante dezasseis anos e a impediu de continuar a acompanhar o marido na faina. Há cerca de cinco anos, o pai de José faleceu, vítima de um cancro no rosto, poucos anos após a morte da mãe. Sem esconder o orgulho nos pais, José apenas lamenta que não tenham tido mais tempo para desfrutar da casa de rés-do-chão e primeiro andar que construíram com os rendimentos da pesca, no terreno que antes acolhia a modesta barraca onde nasceu.
“Tudo o que sei sobre pesca aprendi com os meus pais”, afirma José Botas que, ao contrário deles, encara a pesca como um hobbie. Embora não dependa da pesca para viver, continua ativo no Tejo ao longo de todo o ano, ajustando os horários à rotação de turnos na fábrica. Entre o início de janeiro e meados de abril, dedica-se à pesca da lampreia, utilizando redes de três panos fundeadas, conhecidas como redes branqueiras. De março a meados de junho, José também pesca sável e saboga, recorrendo às redes savaras. A partir de junho até ao final do ano, pesca enguias com nassas, armadilhas feitas de fios entrelaçados que também lhe servem para apanhar camarão do rio entre agosto e novembro. Além das nassas, José usa também outras redes fixas, atravessadas ao longo do rio e presas por um ferro em cada extremidade. Quando a sorte ajuda, é nelas que apanha lúcio-perca, robalo e fataça.
Ao longo das décadas, José Botas assistiu de perto ao declínio das populações piscícolas no Tejo. A poluição é, segundo diz, o principal fator responsável, mas não o único. Entre as várias ameças que afetam o maior rio da Península Ibérica, conta-se também a proliferação de espécies invasoras, como o siluro, ou peixe-gato europeu. “O siluro é o exterminador do Tejo”, declara José, referindo-se ao maior peixe de água doce da Europa. Capaz de atingir 2,8 metros de comprimento e 130 quilos, o siluro é um predador de topo, sem inimigos naturais, e com uma impressionante capacidade reprodutiva. Detetada pela primeira vez em Portugal em 2014, a espécie representa uma séria ameaça à biodiversidade aquática. Em março deste ano, José Botas capturou um siluro de 66 quilos nas suas redes savaras, tendo anteriormente apanhado outros com mais de 30 quilos. Apesar de já existirem medidas de controlo populacional desta espécie, José considera fundamental reforçar os esforços para reduzir o número de siluros no Tejo, uma vez que estão a dizimar espécies nativas como enguias, sáveis e lampreias.
Atualmente, a bateira de José Botas é a única ainda dedicada à pesca no Escaroupim. Batizada com o nome da sua aldeia natal, a bateira Escaroupim conta já com 35 anos de existência, tendo pertencido durante muitos anos ao pai de José. Embora já não seja inteiramente de madeira, como as tradicionais bateiras avieiras — José optou por revesti-la com fibra de vidro, tanto no interior como no exterior — mantém exatamente as mesmas medidas do barco onde passou os primeiros 14 anos da sua vida: 7 metros e 15 centímetros.
Sozinho ou com o filho, a quem transmitiu o gosto pela pesca, José Botas não abdica da faina no Tejo. “Dá-me um gozo tremendo convidar uns amigos para comer uma boa caldeirada de enguias ou uma açorda de sável. Sei que os peixes foram apanhados nas minhas redes, que fui eu quem os amanhei e cortei, e que fui eu — ou a minha esposa — quem os cozinhou”, afirma José, que também vende parte do pescado a particulares da região.
Perto das nove da manhã de uma quinta-feira de julho, pouco depois de cumprir mais um turno de oito horas na Sugal Group, em Benavente, José Botas chega ao Escaroupim. Sem descanso, prepara-se para mais uma jornada de pesca no Tejo, movido pelo mesmo entusiasmo de sempre e por uma ligação profunda ao rio que moldou a sua vida. “Tenho três turnos diferentes, mas arranjo sempre tempo para vir aqui. Andar de barco no Tejo é muito importante para mim. Limpa-me a alma”, diz José, antes de acrescentar, com a convicção de quem conhece o rio desde sempre: “O Tejo representa a minha vida”.