Miguel Castro

Natural de Caldas da Rainha, onde nasceu em 1972, no seio de uma família com fortes ligações à Foz do Arelho, Miguel Castro cresceu junto à Lagoa de Óbidos. Foi lá que, aos 4 anos, aprendeu a nadar com a ajuda da mãe e fez os primeiros passeios de barco em família. “O meu avô tinha uma bateira, o barco tradicional da Lagoa de Óbidos. Recordo-me com alegria dos passeios de bateira em família para apanhar marisco”, conta Miguel que, uns anos mais tarde, começou a fazer “expedições” com os amigos. “Era assim que chamávamos às nossas aventuras. O meu pai tinha trazido umas facas de mato da Guerra do Ultramar, em Moçambique, e escondeu-as, mas eu rapidamente as encontrei. Sempre que saíamos, levávamos as facas de mato do meu pai, umas febras, uma mochila às costas e íamos por aí fazer expedições”, conta, lembrando que “não existiam todas estas casas que agora se veem nas encostas, havia muitos locais selvagens para as nossas aventuras. Foi aí que comecei a gostar de estar na natureza, de fazer coisas na natureza, aprendi muito nessas expedições”.

Apesar de ter estudado até ao 12º ano na Nazaré, onde a mãe era professora, Miguel manteve sempre a ligação à Foz do Arelho. “Todas as sextas-feiras, sem falta, vínhamos para a Foz do Arelho e só regressávamos à Nazaré no domingo à noite. As férias também eram sempre passadas aqui”, recorda, junto à margem norte da Lagoa de Óbidos.   

Depois de concluir o ensino secundário no Externato D. Fuas Roupinho, Miguel Castro não teve dúvidas sobre o curso em que pretendia ingressar: Biologia Marinha. “Não entrei no primeiro ano em que me candidatei porque só escolhi Biologia Marinha, nem sequer coloquei outros cursos como alternativa. Sempre soube o que queria. Como não entrei nesse ano, em 1990, acabei a trabalhar nos censos, o que foi bom, pois ganhei dinheiro suficiente para comprar o meu primeiro carro, que tinha quase a minha idade”, recorda com um sorriso. Nessa altura, conciliava esses trabalhos com a atividade de nadador-salvador na praia da Foz do Arelho, função que desempenhou durante quatro verões.

Determinado a alcançar o seu objetivo, voltou a fazer os exames nacionais no ano seguinte e, em 1991, entrou no curso de Biologia Marinha e Pescas, na Universidade do Algarve. Embora não tenha concluído a licenciatura, pois ficaram quatro cadeiras por fazer, Miguel orgulha-se de ter participado em diversos projetos de investigação científica, ao abrigo de bolsas de estudo, em áreas como microbiologia e oceanografia geológica.

Quando se mudou para Faro, aos 19 anos, Miguel Castro já praticava pesca submarina há cerca de uma década. “Comecei com um primo mais velho. Na altura, ainda era permitido fazer pesca submarina na Lagoa de Óbidos. Apanhávamos muitos linguados e solhas enormes. Mais tarde, passou a ser proibido e comecei a praticar apenas no mar”, conta Miguel.

Aos 17 anos, deu um passo além e tirou um curso de mergulho, após ter concluído o curso de nadador-salvador em São Martinho do Porto. O ISN, que era a entidade responsável pelo curso, decidiu oferecer formação em mergulho a alguns nadadores-salvadores, com a condição de estarmos disponíveis para intervenções em resgates subaquáticos sempre que necessário. Assim foi, nos meses seguintes fiz o curso de mergulho e fiquei obrigado a colaborar com a Marinha em resgates. Tinham o número de telefone da minha casa no Posto Marítimo da Foz do Arelho e, sempre que surgia algum problema, ligavam-me e lá ia eu. Tinha o material todo montado e preparado para sair de barco. Felizmente, nunca foi preciso fazer nenhum resgate”, conta, sorrindo.

No Algarve, dispondo de condições privilegiadas para a prática de pesca submarina, Miguel continuou a praticar esta modalidade e, enquanto estudante, chegou mesmo a trabalhar durante algum tempo como “pescador submarino profissional”.

“Entretanto, o mar esteve muito mau durante seis meses seguidos. Eu e o meu companheiro de mergulhos não pudemos ir à água e tivemos que arranjar uma alternativa. Ambos fazíamos umas brincadeiras em HTML [linguagem de programação utilizada para criar páginas web] e, a certa altura, recebemos um contacto de uma banda de música que nos perguntou se podíamos criar uma página de Internet para a banda, visto que todas as bandas estrangeiras já tinham a sua página, e dizia que pagava por esse trabalho. Estávamos no início da Internet em Portugal, não fazíamos ideia que dava para ganhar dinheiro a fazer páginas de Internet. De repente, a nossa vida mudou. Começámos a tirar formações e tornámo-nos webdesigners”, lembra Miguel. Durante 17 anos, trabalhou como programador informático, primeiro na empresa que criou com o amigo, a Fábrica Virtual, e depois numa empresa do grupo PT, até a sua vida mudar novamente.  

No final de 2017, Miguel Castro decidiu sair da empresa onde trabalhava e começou a tratar das licenças necessárias para criar o seu próprio projeto. “Voltei às minhas origens, às minhas atividades de natureza e aventura.

Em 2019, criei a Intertidal, a empresa que passou a ser o meu trabalho”, diz Miguel Castro, antes de explicar o motivo do nome escolhido. “Fiz um brainstorming com pessoas de confiança para escolher o nome e quase ninguém gostava do nome Intertidal, mas para mim fazia todo o sentido. O termo ‘intertidal’ significa entre-marés, que corresponde à faixa de terreno litoral situada entre os níveis médios da maré alta e da maré baixa, apenas ficando exposta ao ar durante a maré baixa. Existe em qualquer parte do mundo. Como a empresa oferecia atividades tanto dentro como fora de água, achei que o nome Intertidal era perfeito. Não é um nome fácil, a maioria das pessoas não conhece o significado, mas achei que o meu cliente, que é um cliente específico, iria entender. Alguns entendem, outros não, mas depois de explicar o significado, acham que faz todo o sentido. Além disso, é um nome transversal a muitos idiomas”, explica Miguel, apontando para a zona intertidal da Lagoa de Óbidos. No fundo, o nome da empresa carrega em si elementos que simbolizam os seus valores e visão, que assentam numa oferta que vai muito além da simples animação turística.

Especializada em turismo de natureza e animação turística, a Intertidal distingue-se pela forte componente científica, histórica, cultural, etnográfica e ambiental das suas atividades. A missão da empresa é proporcionar experiências únicas, repletas de interação, aprendizagem e diversão. “O que diferencia a Intertidal de outras empresas de animação turística é a informação adicional que oferecemos nas nossas atividades. Queremos que as pessoas se divirtam a aprender connosco. Claro que, quem quiser, pode simplesmente alugar uma prancha de SUP, um kayak ou uma bicicleta aquática e ir curtir. Mas, nos nossos passeios guiados — seja de kayak, SUP ou barco — o objetivo é dar a conhecer a Lagoa de Óbidos sob uma perspetiva que a maioria desconhece. Já levei pessoas da zona, que cresceram junto à lagoa, mas nunca a tinham conhecido desta forma”, diz Miguel Castro, o homem ao leme Intertidal.

Nos passeios guiados da empresa, partilha com os clientes todo o seu conhecimento sobre a Lagoa de Óbidos. Aliando a sua formação académica à experiência pessoal, Miguel proporciona experiências autênticas e enriquecedoras, marcadas pelo rigor científico, histórico e etnográfico. “Nos passeios guiados, provamos algas e plantas comestíveis, explico técnicas tradicionais de pesca de amêijoas, berbigões e lingueirões, e partilho curiosidades sobre a fauna e flora da lagoa. Além disso, como tenho uma boa relação com a comunidade piscatória local, sempre que possível promovemos interações com os pescadores. Eles gostam de mostrar os instrumentos que usam, como o ancinho e o fisgote, e até deixam os participantes experimentá-los. Têm orgulho no que fazem. É uma interação muito gira”, descreve Miguel, enquanto veste o colete de flutuação.

A componente cultural da Intertidal inclui as histórias das gentes da Foz do Arelho, que Miguel fez questão de preservar. “Desde miúdo que gosto de ouvir histórias dos velhos. Sentava-me nos murinhos à beira da estrada — que chamamos de estrada real — e ficava ali, a escutar as suas conversas. Nunca imaginei que, anos mais tarde, estaria a recontar essas histórias”, confessa, com orgulho por ter guardado um verdadeiro tesouro “ao qual ninguém dava importância”. As histórias de naufrágios ocorridos nas águas em redor da Foz do Arelho, transmitidas de geração em geração, aliadas ao conhecimento científico e histórico de Miguel Castro, fazem de um passeio guiado pela Intertidal uma experiência verdadeiramente singular.

Apesar de ser empresário em nome individual, bem como a única pessoa a trabalhar a tempo inteiro na Intertidal, Miguel Castro conta com a ajuda de Annelies — uma colaboradora holandesa em regime parcial —, do pai e do filho. “O meu pai está comigo desde o início da Intertidal. A lei exige uma tripulação de duas pessoas no barco: eu sou o mestre e o meu pai é o marinheiro. O meu filho também me ajuda desde os 16 anos”, diz Miguel, cuja empresa enfrenta os mesmos desafios que afetam muitas outras ligadas à animação turística na região. “Durante a época alta, temos muito trabalho. O problema é o resto do ano. Nós, empresários do turismo local, temos dificuldade em ultrapassar os invernos”, admite.

Nos meses mais calmos, Miguel dedica-se sobretudo à preparação da nova temporada: trata de orçamentos, faz a manutenção do equipamento, contacta hotéis e outras entidades, e planeia novidades para o negócio. “Além disso, também organizamos caminhadas e cursos de sobrevivência durante todo o ano. Para isso, juntei-me aos melhores instrutores de sobrevivência do país”, afirma com entusiasmo.

No ano passado, Miguel encontrou mais uma forma de contornar os invernos difíceis do Oeste. Graças ao domínio do francês, adquirido nos tempos de escola, e ao conhecimento profundo da região do Algarve — onde viveu cerca de 15 anos — passou a colaborar como guia turístico para agências estrangeiras. “Enviam-me uma data, uma lista de participantes e um orçamento. Depois encontro-me com o grupo num hotel, apresentamo-nos uns aos outros e passamos uma semana inteira a caminhar pelo Algarve”, conta.

Embora não seja biólogo de formação, o que o impede de assinar artigos científicos, Miguel colabora regularmente em campanhas de investigação científica na Lagoa de Óbidos. “Contactam-me tanto para fornecer os meios necessários às recolhas como pelo conhecimento local que possuo. Por exemplo, se precisarem de localizar populações de vieiras ou cavalos-marinhos, eu posso levá-los diretamente aos locais”, explica. Miguel Castro também participa, como amador, em campanhas de arqueologia subaquática. 

O seu conhecimento profundo da Lagoa de Óbidos valeu-lhe o reconhecimento das autarquias locais: é frequentemente convidado pelos municípios de Óbidos e Caldas da Rainha para servir de cicerone a entidades que visitam a lagoa. O mesmo acontece com escolas, que o procuram para desenvolver atividades de educação ambiental — ações que Miguel realiza por um valor simbólico.

Quando começou a fazer “expedições” com os amigos, aos 10 anos, Miguel Castro estava longe de imaginar que já praticava bushcraft. Só muitos anos mais tarde, ao conhecer alguém ligado à comunidade, percebeu que aquilo que fazia desde pequeno tinha nome. “A primeira vez que fui a um encontro fiquei estupefacto. Nunca imaginei que houvesse tanta gente a fazer o mesmo que eu. Praticava bushcraft há mais de 30 anos, só não sabia que se chamava assim”, conta. “Traduz-se literalmente por ‘artes do mato’. Não é um desporto — é uma atividade, ou até um modo de vida. Consiste em utilizar os recursos que a natureza nos dá para construir um abrigo, acender uma fogueira, filtrar água, encontrar alimento. Nada disto é novo. A sociedade é que, por deixar de precisar destas competências, acabou por nos retirar esse conhecimento”.

A ligação afetiva de Miguel Castro à Foz do Arelho está refletida numa coleção de objetos que foi reunindo ao longo da vida. “Houve muita gente desta zona que emigrou para os Estados Unidos e para o Canadá no início do século XX, deixando as casas fechadas com a intenção de um dia regressar. Alguns voltaram, outros não. Lá tiveram filhos e netos e, um dia, esses netos lembraram-se de que os avós tinham uma casa em Portugal. Muitos entregaram essas casas a agências imobiliárias para serem vendidas. Quando o pessoal das imobiliárias lá chegava, encontrava-as cheias de objetos com mais de 70 anos — e mandava tudo para o lixo. Segundo Miguel, essas casas eram autênticas cápsulas do tempo, testemunhos do quotidiano na Foz do Arelho nos anos 30. “Recuperei muitos desses objetos, incluindo móveis feitos por um mestre que construía bateiras aqui na Foz do Arelho. Chamava-se Sabóia. Quando não havia barcos para fazer, dedicava-se aos móveis”. Parte desta coleção está hoje em sua casa, enquanto outra pode ser visitada no Centro de Interpretação da Lagoa de Óbidos. 

Ao longo dos anos, Miguel também reuniu informações sobre quase todos os naufrágios ocorridos entre o Baleal e Salir do Porto. “Tenho vinte e dois barcos naufragados documentados. O meu estudo baseia-se em investigação — sobretudo em jornais da época e comunicados oficiais — mas também em histórias populares, passadas de geração em geração”, conta, revelando um fascínio especial pelo mais célebre de todos os naufrágios da região.

“O S.S. Roumania é, de longe, o mais conhecido dos barcos naufragados nesta zona. Faz parte do imaginário coletivo das gentes da região”, afirma Miguel Castro, referindo-se ao vapor inglês de 111 metros que, em rota de Liverpool para Bombaim, naufragou ao largo da Foz do Arelho na madrugada de 28 de outubro de 1892. Entre os 115 passageiros, apenas 8 sobreviveram. Os jornais da época relataram que, durante semanas, o navio foi alvo de saques, e nem mesmo a presença de tropas no local conseguiu travar os atos de pilhagem. Após o saque, o S.S. Roumania foi sendo destruído pelas ondas, até restarem apenas destroços. “Nos anos 60, foi concedida uma licença para explorar o metal do Roumania. Uma empresa de Lagos procedeu ao desmantelamento dos destroços, usando dinamite para rebentar a estrutura e retirar o metal. Como há outros naufrágios na mesma zona, é provável que tenham destruído o Roumania, para o qual tinham licença, e depois tenham feito o mesmo com outros navios próximos. Isso torna muito difícil o estudo arqueológico do local”, lamenta Miguel Castro. 

Há seis anos, teve a oportunidade de mergulhar no local onde, durante décadas, se acreditou estarem os restos do S.S. Roumania. Acompanhado por Pedro Ramalhete e em colaboração com arqueólogos e historiadores, fez filmagens subaquáticas que ajudaram a esclarecer o equívoco. “Há fortes indícios de que aqueles destroços não pertencem ao S.S. Roumania. Não temos provas definitivas, mas estamos 99% certos. Acreditamos que se trata do vapor S.S. Aberlour, que tinha dimensões muito semelhantes ao Roumania. Este navio vinha carregado de carvão, o que explica porque, ainda hoje, se encontram pedaços de carvão na zona da 'aberta', como é conhecida a ligação da Lagoa de Óbidos ao mar”. Nos seus passeios guiados, Miguel faz questão de explicar que aquele carvão está ali desde 1923 — o ano em que o S.S. Aberlour, então rebatizado como P.S. Domingo, naufragou. 

Quanto ao S.S. Roumania, a esperança de localizar os seus destroços continua viva. “O manifesto de carga do Roumania incluía uma locomotiva e carris para os caminhos de ferro da Índia. Ora, num dos barcos naufragados aqui na zona, encontramos carris, por isso faz sentido que seja o Roumania. Assim que o mar permitir, temos previsto um mergulho nesse local para fotografar, tirar medidas e, sobretudo, procurar inscrições ou números de série que nos permitam identificar as peças e cruzá-las com as plantas do navio”, explica. No entanto, reconhece que o desafio é grande: “É necessário que o barco esteja destapado — o que nem sempre acontece, porque está numa zona de forte dinâmica de areias”.

A Lagoa de Óbidos nunca deixou de ocupar um lugar central na vida de Miguel Castro, mesmo durante os anos em que viveu em Faro. “De três em três semanas, vinha passar o fim de semana à Foz do Arelho. A primeira coisa que fazia, depois de estar três semanas sem ver a família e a minha namorada da altura, era ir ver a lagoa. Só depois é que ia para casa. Antes de voltar para o Algarve, pegava na mota e vinha despedir-me da lagoa. Só então arrancava”, conta, com um brilho nos olhos.

Foi essa ligação profunda à maior lagoa costeira do país que o levou a envolver-se ativamente na sua defesa. “Assumi a missão de preservar e ajudar a Lagoa de Óbidos, simplesmente porque não havia mais ninguém a fazê-lo. Felizmente, hoje em dia, os municípios de Óbidos e Caldas da Rainha já demonstram essa preocupação. Além disso, existem várias associações, algumas criadas por estrangeiros que vivem cá, que também têm trabalhado na preservação da lagoa”. Desde a criação do Festival da Lagoa, em 2023, Miguel participa ativamente no evento, dinamizando caminhadas interpretativas e atividades aquáticas que ajudam a sensibilizar o público para a importância da conservação deste ecossistema único.  

Com uma “ligação transcendental à Lagoa de Óbidos”, nas suas palavras, Miguel Castro apenas deseja continuar a fazer “expedições” e a partilhar o seu conhecimento com quem o acompanha.

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