Mariana Duarte Santos

Natural de Lisboa, onde nasceu em 1995, Mariana Duarte Santos sempre soube o que queria ser quando crescesse. “Desde o infantário dizia que queria ser pintora. Quando me pediam para escolher outra profissão, respondia que queria ser cozinheira e pintora, ou astronauta e pintora. Ia mudando de profissão, mas nunca deixei de querer ser pintora”, conta.

Poucos anos depois, descobriu uma nova paixão: a música. “Aos 9 anos, comecei a ficar obcecada por bandas de rock dos anos 60 aos 80, principalmente os Rolling Stones. Foi a primeira banda pela qual me apaixonei — é a minha banda de coração. Depois vieram os Smiths, os Beatles e muitas outras”, recorda. Nessa altura, começou a aprender guitarra, piano e bateria. Apesar da forte ligação à música, Mariana rapidamente percebeu que não seria essa a sua profissão. “Percebi que o desenho me saía com mais naturalidade. Comecei a desenhar capas de álbuns e retratos de músicos durante as aulas.

Aos 13 anos, decidi levar o desenho a sério — foi aí que percebi que era mesmo isso que queria fazer”, relembra. Pouco depois, passou a registar o mundo à sua volta em diários gráficos, onde desenhava os amigos, a família, os lugares por onde passava e a rotina do dia a dia. Contrariando a vontade da família — sem qualquer ligação ao mundo das artes — Mariana seguiu a sua vocação. “Diziam-me muitas vezes que não era possível viver da arte. Por isso, desde cedo quis provar que era possível fazer uma carreira artística. Tive o meu primeiro trabalho remunerado aos 14 anos. Enviava propostas para sites de freelancers e comecei por fazer ilustrações. Trabalhei para clientes na Austrália, Noruega e outros países”, conta. Com o tempo, percebeu que a ilustração não era o seu verdadeiro caminho, mas ajudou-a a ganhar confiança e experiência. “Foi uma forma de mostrar que era possível trabalhar nesta área”. A transição para o retrato aconteceu naturalmente, e com ela começou também a desenvolver um estilo próprio.

Aos 15 anos, ingressou na Escola Artística António Arroio — uma etapa que guarda com especial carinho. “Foi a escola que mais me deu, tanto em termos técnicos como conceptuais e artísticos. Gostei tanto que, quando entrei para Belas-Artes, fiquei um pouco desiludida. Parecia uma repetição menos exigente daquilo que já tinha feito na António Arroio. Fiquei um ano e saí”. Mais tarde, por incentivo da família — que não queria vê-la sem formação universitária — ingressou no Ar.Co (Centro de Arte e Comunicação Visual), onde sentiu um novo impulso. “Aprendi bastante, especialmente em gravura”. No Ar.Co completou o curso de Desenho e Pintura, o curso avançado em Artes Plásticas e ainda um projeto individual em Gravura. 

Quando concluiu os estudos, Mariana Duarte Santos já contava com um currículo impressionante, que incluía várias exposições individuais e coletivas. Nos anos seguintes, continuou a dedicar-se ao retrato e à gravura, desenvolvendo obras cada vez maiores em escala. O seu trabalho começou também a ganhar projeção internacional, com exposições em Espanha, Estados Unidos, Reino Unido e República da Irlanda. Paralelamente, passou a dar aulas privadas de desenho e a conduzir workshops de gravura, nos quais utiliza uma prensa portátil para ensinar técnicas de impressão.

A busca por novos desafios artísticos tem sido uma constante no percurso de Mariana Duarte Santos, como demonstram as inúmeras propostas que submeteu a “open calls” promovidas por entidades nacionais e internacionais. No final de 2019, encontrou uma dessas oportunidades num concurso da Fundação EDP para a criação de um mural. “A minha proposta foi selecionada e esse acabou por ser o meu primeiro mural”, conta, referindo-se à obra realizada na aldeia de Capinha, no concelho do Fundão. “O valor não era muito elevado, mas valeu pela experiência de mostrar que conseguia trabalhar em grande escala. Era um mural com 9 metros por 12. Apesar de ter algum receio de alturas, gostei da sensação de subir e descer na grua”.

Mariana descreve a transição para os murais como algo bastante natural: “A técnica de pintar uma tela e um mural é semelhante. A pintura cresce, mas os instrumentos também — uso pincéis e rolos maiores”. A partir desse primeiro mural, começou a receber diversos convites e a consolidar o seu nome na área. Atualmente, conta com cerca de setenta murais espalhados por Portugal e por países como Espanha, França, Itália, Luxemburgo, República da Irlanda e Dinamarca. 

Grande parte desses murais tem como base fotografias antigas. “Peço à junta de freguesia ou à entidade que me contrata que me envie tudo o que tiver em termos de imagens antigas. Às vezes, falo diretamente com os moradores da zona e peço fotografias do quotidiano. Procuro imagens que evoquem memórias e estabeleçam uma ligação com a identidade coletiva”, explica. Essa abordagem tem resultado de forma particularmente eficaz: “Muitas vezes ouço as pessoas dizerem ‘parece o meu avô’, ‘faz lembrar a minha mãe’ ou ‘lembro-me quando as senhoras se vestiam assim’. Uma fotografia de um edifício ou de uma praça não cria esse tipo de ligação”, diz Mariana, que já realizou vários murais na sua cidade natal, Lisboa. O primeiro, inspirado na obra do fotógrafo Artur Pastor, está localizado no Intendente, na Rua Nova do Desterro. Esta intervenção artística retrata uma antiga mercearia da freguesia de Arroios, em tons de preto e branco — um tributo à memória do bairro e à vida quotidiana de outros tempos.

Uma das obras mais marcantes no percurso artístico de Mariana Duarte Santos surgiu no âmbito do projeto Zambujal 360, que tem como objetivo transformar o Bairro do Zambujal, no concelho da Amadora, no primeiro bairro social do mundo a tornar-se embaixador dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. A “educação pela arte” é um dos pilares deste projeto pioneiro, que desafiou 17 artistas a intervirem em 17 paredes de edifícios do bairro, cada uma dedicada a um dos ODS. A Mariana foi atribuída a Igualdade de Género, um tema que abraçou com entusiasmo e liberdade criativa.

“Foi uma obra muito especial, porque foi das poucas vezes em que tive total liberdade criativa para interpretar um tema”, conta. Desde o início, procurou fugir aos clichés habitualmente associados ao tema. “A ideia base foi representar a Igualdade de Género através de um jogo de xadrez — uma espécie de alegoria à ‘guerra dos sexos’. É um jogo milenar, repleto de simbolismo, e com uma curiosidade interessante: a rainha é a peça mais poderosa do tabuleiro. Daí o nome do mural: Queen for a Day”. Mariana inspirou-se num jogo real de xadrez entre Garry Kasparov e Judit Polgár, a única mulher a integrar o top 10 mundial. Judit venceu essa partida, depois de Kasparov ter proferido comentários depreciativos sobre a presença feminina no xadrez. A posição do tabuleiro no mural replica esse momento histórico. Outro elemento do mural é uma estante de livros, onde Mariana reuniu referências a figuras — homens e mulheres — que marcaram a luta pela igualdade de género, vindos de áreas como as ciências, as artes e o direito. Entre esses símbolos, destaca-se também uma folha de papel com caracteres Nüshu, o único sistema de escrita conhecido criado e usado exclusivamente por mulheres. Desenvolvido na China no século XIX, o Nüshu permitia às mulheres, impedidas de aprender a ler e escrever, comunicar em segredo entre si. “Poderia continuar a enumerar símbolos da igualdade de género, mas penso que já deu para perceber a carga simbólica do mural”, afirma Mariana. Para compor a cena representada, contou com a colaboração de dois moradores do Bairro do Zambujal, que posaram como modelos para a imagem final.

Embora costume trabalhar sozinha, Mariana Duarte Santos valoriza as relações que estabelece com as pessoas dos locais onde pinta murais — e gosta especialmente de observar as suas reações. “Hoje em dia, começo a identificar certos padrões. Por exemplo, quanto mais rica for a zona, pior costuma ser a experiência. Nessas áreas, quase ninguém diz nada e, quando dizem, é para reclamar ou chamar a polícia — o que já aconteceu mais do que uma vez”, conta. “A experiência é mil vezes melhor quando pinto num bairro ou numa vila com um forte sentido de comunidade. No início há sempre alguma desconfiança, mas, à medida que vou explicando o significado do mural e a imagem começa a surgir, as reações mudam completamente. As pessoas trazem-me cerveja, comida, e estão sempre a meter conversa”, diz, com um sorriso.

Às vezes, essa generosidade dá origem a situações caricatas. “Uma vez, estava a pintar em Caria, perto de Belmonte, quando um vizinho me ofereceu uma garrafa de ginjinha caseira. No dia seguinte, apareceu outro vizinho com um garrafão de cinco litros, dizendo que a dele era melhor. No terceiro dia, veio ainda outro senhor, garantindo ter a melhor ginjinha da terra — e ofereceu mais um garrafão. Saí de lá carregada de ginjinha. Foi muito divertido”, recorda. Ao longo dos anos, muitas destas interações ficaram gravadas na memória. No Bairro Horizonte (antigo Bairro da Curraleira), por exemplo, as crianças brincavam ao lado da parede que pintava — e uma menina lhe levava flores todos os dias. Na República da Irlanda, onde realizou vários murais, Mariana recorda-se das ofertas de whisky ao final do dia e de um miúdo que lhe deu um chocolate.

Já em Bisacquino, uma pequena comuna siciliana onde participou no projeto artístico iART FIVAS (dedicado à relação entre o cinema e a Sicília), viveu uma amizade improvável enquanto pintava um mural em homenagem a Frank Capra, natural da localidade. “Era um senhor com cerca de 70 anos. Eu não falo italiano, e ele não falava inglês — e ainda por cima falava em siciliano, que é ainda mais difícil de entender. Mesmo assim, entendíamo-nos. Trazia-me bolinhos todos os dias, convidou-me para jantar em sua casa e para conhecer a mulher. No fim, chorou quando me despedi. Mais tarde, chegou a ligar-me — ele falava em siciliano e eu respondia em português, e era como se nos entendêssemos. Gostei muito de conhecer essa pessoa”, diz Mariana, com emoção.

Mesmo não sendo particularmente fã de colaborações, Mariana Duarte Santos já participou em alguns projetos conjuntos— mas apenas quando considera que “faz sentido”. Foi o caso do mural “O Som da Revolução”, criado no ano passado em alusão aos 50 anos do 25 de abril de 1974. Esta impressionante intervenção artística, com 420 metros quadrados, foi realizada em parceria com Regg Salgado, na cidade da Maia. Outra artista com quem Mariana colaborou foi Daniela Guerreiro. Em ambos os casos, a colaboração surgiu naturalmente, sustentada por uma relação prévia de amizade e admiração mútua. Com Regg Salgado e Daniela Guerreiro, Mariana também coorganizou as duas primeiras edições do MurArcos – Festival de Arte Urbana, um projeto que visa reabilitar, através da pintura, diversos edifícios na zona histórica de Arcos de Valdevez.

Muito antes de ser convidada a criar um mural em homenagem a Frank Capra, o trabalho de Mariana Duarte Santos já revelava uma forte influência do cinema. “Gosto da estética dos filmes noir, e há muitos filmes e séries com essa estética nos anos 60 e 70”, diz a artista, acrescentando que “Twilight Zone” foi a sua primeira grande referência cinematográfica. Muitas das suas obras partem de imagens recolhidas ao longo dos anos, provenientes de filmes esquecidos ou séries antigas, como “Hitchcock Presents” ou “The Outer Limits”. “Não escolho imagens de filmes ou séries conhecidas, porque quero que essas imagens existam por si, sem estarem necessariamente ligadas ao contexto original. São imagens poderosas que, muitas vezes, passam despercebidas — e que eu considero merecedoras de nova vida.  Interessa-me retirá-las do seu enquadramento original e reapresentá-las de uma forma que permita criar novas narrativas”, explica.

Um exemplo claro dessa abordagem é a exposição The Everyman, apresentada no Espaço Exibicionista em 2022. “A exposição nasceu de uma investigação sobre a carreira televisiva e cinematográfica de um ‘character actor, neste caso, John Anderson. Estes atores, por norma, nunca têm papéis principais — estão sempre nas margens da narrativa, representando personagens secundárias que quase passam despercebidas. Baseei-me em “still frames” de filmes e séries onde ele participou, retirando essas imagens do seu contexto original para criar narrativas ambíguas sobre vidas de personagens inventadas, interpretadas por um ator praticamente esquecido”, descreve Mariana. 

Dezasseis anos após ter decidido seguir uma carreira artística — determinada a provar que é possível viver da arte — Mariana Duarte Santos é hoje uma artista visual, pintora e muralista de renome. Com um estilo figurativo e realista, o seu trabalho centra-se nas pessoas e nas formas como estas se relacionam com o espaço físico e psicológico que as envolve. Mariana orgulha-se do percurso que tem vindo a construir e do crescimento que conquistou enquanto artista. Entre murais, exposições e a venda de quadros, o seu maior desejo continua a ser o de manter-se fiel àquilo que a move: trabalhar apenas em projetos que lhe despertem um interesse genuíno e orgânico.

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