Joaquim Ramusga
A freguesia de Vieira de Leiria, no concelho da Marinha Grande, está profundamente ligada a um dos maiores movimentos migratórios internos de Portugal. A partir de meados do século XIX, muitas famílias de pescadores começaram a procurar alternativas à pesca tradicional de cerco e arrasto (arte xávega), que se tornava perigosa com o mar agitado, especialmente durante o inverno. Quando o mar ficava revolto no fim do verão, os pescadores da Praia da Vieira deslocavam-se para as margens do rio Tejo em busca de melhores condições de pesca. Assim nasceram os avieiros — pescadores nómadas que dividiam a vida entre o rio e o mar. Com o tempo, muitos passaram a viver em casas de madeira, construídas sobre estacas para escapar às cheias do rio, dando origem às aldeias avieiras do Tejo. Os “ciganos do rio”, como os apelidou Alves Redol em Os Avieiros, desenvolveram uma cultura ribeirinha única, com tradições específicas em arquitetura, gastronomia, embarcações e técnicas de pesca. A identidade da cultura avieira sobreviveu nas terras da borda-d'água ribatejana ao longo de gerações e, ainda hoje, algumas dessas aldeias continuam a marcar presença nas margens do Tejo. Em Vieira de Leiria, terra de onde partiram centenas de famílias avieiras, restam poucos vestígios e memórias desse tempo em que os pescadores fugiam da inclemência do mar em direção ao “jardim de peixe”, como era conhecido o Tejo entre os avieiros. Joaquim Ramusga é um dos últimos da sua geração que viveram essa experiência: “sou o único vivo que, em tempos, foi avieiro”, confessa.
Natural de Vieira de Leiria, viveu aí até aos 5 anos, altura em que se mudou com a mãe e o padrasto para Porto Sabugueiro, entre Muge e Benfica do Ribatejo, onde passou sete anos a viver numa barraca de madeira". Ao contrário de muitas crianças que cresceram em aldeias avieiras, Joaquim teve a oportunidade de frequentar a escola primária, o que levava a que os amigos lhe pedissem para escrever cartas de amor. “Quando não estava na escola, ajudava na pesca”, recorda, acrescentando que aprendeu “coisas que ainda hoje sei fazer”, como as tarrafas e os galrichos, dois dos apretrechos típicos da pesca avieira.
Aos 12 anos, Joaquim regressou a Vieira de Leiria para trabalhar com um primo, ajudando a carregar o carro de peixe que era depois vendido em várias localidades. Mas a experiência ficou aquém das suas expectativas e, dois anos depois, voltou à borda-d’água — desta vez para as margens do rio Sado. Em Alcácer do Sal, onde viveu durante quatro anos, “apanhávamos linguados, robalos, robaletes, fataças”, recorda Joaquim Ramusga, acrescentando que muitas vezes dormia no próprio barco onde pescava com o padrasto. Com o tempo, a relação entre os dois deteriorou-se, levando-o a abandonar definitivamente a vida de avieiro e a iniciar uma nova etapa. Antes de cumprir o serviço militar em Angola, ainda trabalhou na Siderurgia Nacional e participou na construção da Ponte de Sacavém, sobre o rio Trancão.
No regresso do Ultramar, já na posse da carta de condução de ligeiros, pesados e motociclos, tirada em Luanda, Joaquim Ramusga tornou-se camionista. Num dia levava toneladas de cartão para as fábricas de papel de Paços de Brandão, noutro transportava fardos de palha do Alentejo para o Porto. Durante anos, percorreu o país ao volante, até que um acidente o forçou a abandonar o camião e a passar para um táxi. Como chofer de praça em Lisboa, passou a conhecer as ruas da capital, onde viveu durante vários anos. Já casado com uma portuense e com pouco mais de trinta anos, surgiu-lhe a oportunidade de regressar à terra natal. “Quando comecei a trabalhar como camionista, vinha sempre que podia a Vieira, e ficava sempre uma saudade”, recorda. No final dos anos 70, começou a trabalhar como vendedor para uma fábrica de limas de Vieira de Leiria. Durante mais de duas décadas, saía de casa à segunda-feira e só regressava no sábado, onde a família o esperava. Após a reforma, continuou a trabalhar por conta própria, vendendo limas da fábrica Tomé Feteira, até que decidiu abrir uma churrasqueira num anexo da loja da família, na Praia da Vieira.
Apesar do sucesso do negócio, os fumos da churrasqueira acabaram por prejudicar-lhe a saúde, forçando-o a procurar uma nova atividade. Depois de uma vida feita de muitos trabalhos e esforços, descobriu um novo ofício: a arte de esculpir pequenos barcos em madeira, réplicas fiéis das embarcações da arte xávega e das bateiras dos avieiros. Tal como os barcos em que navegou no Tejo e no Sado, as miniaturas criadas por Joaquim mantêm todos os detalhes das embarcações tradicionais. Da ré, onde se guardavam as redes e o peixe, à emparadeira, usada para cozinhar a bordo, até à proa coberta por um toldo, onde Joaquim dormia e se resguardava da chuva e do frio — tudo é reproduzido com precisão. Hoje, vende essas peças na loja de artigos de praia e souvenirs que mantém na Praia da Vieira. E não surpreende que os mais procurados sejam os barcos de mar, típicos da região, famosa pela sua ligação à arte xávega. Entre eles, o mais vendido é o Viking, que representa uma das companhas de pesca da Praia da Vieira. Mas Joaquim Ramusga também dedica especial atenção ao Flor da Praia Azul, a última embarcação artesanal da vizinha Praia do Pedrogão.
O artesão, que também já foi avieiro, taxista, camionista e vendedor, chegou a ser presidente da Assembleia de Freguesia de Vieira de Leiria e presidente do Industrial Desportivo Vieirense, o clube da sua terra, durante 5 anos. “Licenciado pela vida”, como o descreve o filho, Joaquim Ramusga é um vieirense com uma vida repleta de experiências e histórias para contar.