Carlos Afonso
Nascido, batizado e casado em Arganil, Carlos Afonso — ou simplesmente Afonso, como é carinhosamente conhecido pelos seus conterrâneos — é uma figura muito popular nesta vila do distrito de Coimbra. Ao longo da sua vida, dedicou-se a três profissões que hoje estão praticamente extintas: engraxador, ardina e cauteleiro.
Afonso começou a engraxar sapatos e a ajudar o irmão na venda de jornais ainda nos tempos da escola primária. “Corria a vila toda a entregar jornais porta a porta”, recorda, lembrando que “era uma vida difícil”. Até hoje, o ombro esquerdo ainda guarda a marca deixada pela alça da pesada sacola de jornais que carregou diariamente por mais de vinte anos. Já experiente como engraxador e ardina, decidiu um dia expandir o negócio. “Fui à Casa da Sorte, em Coimbra, e perguntei como funcionava a venda da lotaria. Explicaram-me tudo e levei os bilhetes para Arganil.” Foi assim que começou a carreira do cauteleiro mais conhecido do país.
Ao longo de mais de quatro décadas como vendedor de bilhetes de lotaria, Afonso vendeu doze grandes prémios da Lotaria Nacional em Arganil. “Fiz muita gente milionária”, afirma com orgulho, acrescentando que vários clientes premiados lhe ofereceram lembranças como forma de agradecimento. Um desses clientes, um concessionário de automóveis que ganhou um prémio na Lotaria de Natal, presenteou-o com um carro novo — um Ford Fiesta — em cumprimento de uma promessa feita quando adquiriu o bilhete. “Tentei vender uma cautela ao Tó Quim, ele não queria, mas eu insisti. Acabou por comprar e disse-me que, se ganhasse alguma coisa, me daria um carro. Assim foi: ganhou e deu-me um carro que ainda hoje tenho”. A fama de Afonso como vendedor de taludas — os maiores prémios da lotaria — ultrapassou as fronteiras do concelho de Arganil. Segundo Afonso, chegou a receber dezenas de cartas de várias regiões do país, pedindo-lhe para lhes enviar bilhetes. Além disso, foi convidado para diversos programas de televisão e alvo de reportagens em muitos dos jornais que vendia enquanto ardina, como o Correio da Manhã, o Diário de Notícias e o Diário de Coimbra. “Toda a gente me conhece”, diz, sem rodeios. Carlos Afonso, o cauteleiro que mudou a vida de muitos arganilenses, também teve a sorte a seu favor ao ganhar um prémio numa cautela que não conseguiu vender. “Estava a construir a minha casa, paguei o que devia e comprei várias coisas”, recorda. Ainda assim, não esqueceu a comunidade: “Dei vinte contos aos Bombeiros Voluntários de Arganil para a compra de uma ambulância e ajudei outras instituições locais.”
Tendo deixado a venda de jornais aos 55 anos — “dava muito trabalho correr a vila toda a entregá-los”, justifica —, Carlos Afonso continuou a engraxar sapatos e a vender sorte até à chegada da pandemia. Embora ainda se sinta capaz de trabalhar a tempo inteiro, optou por se dedicar apenas à casa e à família. No dia em que o encontrámos, estava acompanhado por um dos seus quatro netos, Ricardo Filipe, que o acompanhou durante a sessão fotográfica e calçou os sapatos que Afonso engraxou — provavelmente os últimos de uma carreira que durou mais de 60 anos. Ao folhearmos um dos muitos recortes de jornal que Carlos Afonso nos mostrou com orgulho, não conseguimos conter o sorriso ao descobrir que, há cerca de 14 anos, o seu grande sonho era engraxar os sapatos do neto recém-nascido... chamado Ricardo Filipe.