Vítor Rodrigues

Nascido em 1964, na Marinha Grande, Vítor Rodrigues apaixonou-se desde cedo pela arte de trabalhar o vidro. Filho de Manuel Lopes Rodrigues, mais conhecido por “Manuel do Canto”, nome grande da cultura vidreira marinhense, Vítor passou muitas horas a observar o pai a trabalhar antes de pegar no maçarico pela primeira vez. “Quando vinha da escola, ia sempre para o pé do meu pai vê-lo trabalhar. Ao vê-lo mexer no vidro, fui percebendo que uma das mãos tem de estar sempre a mexer, para o vidro estar sempre a desandar. Se essa mão parar, o vidro cai”, diz Vítor, revelando um dos segredos do ofício de maçariqueiro. Aos 12 anos, cansado de ver os seus berlindes serem roubados por colegas de escola, começou a fazer os seus próprios berlindes coloridos. Foi o princípio de uma carreira de artesão do vidro que dura há 49 anos.  

Trabalhou até aos 18 anos na fábrica de termo-moldagem de vidro plano do pai, onde também trabalharam três das suas quatro irmãs. Quando o pai sofreu um AVC, aos 50 anos, e deixou de trabalhar, Vítor Rodrigues decidiu seguir outro rumo, sem nunca pôr de lado o maçarico. Teve vários trabalhos até surgir uma oportunidade que marcou o seu percurso profissional. Durante três meses, realizou um intercâmbio vidreiro em Itália, onde aprendeu a técnica do mosaico vicentino e do vitral. Nesse período, em que estudou na cidade de Turim, Vítor teve a possibilidade de visitar Murano, uma pequena ilha, às portas de Veneza, conhecida mundialmente pelo seu vidro. 

Quando regressou de Itália, o pai havia mandado construir um barracão para se dedicar à criação de máquinas para trabalhar o vidro, que lhe permitiram continuar a trabalhar como artesão. Tendo ficado com um braço e uma perna sem se mexerem, em consequência do AVC, “Manuel do Canto” idealizou e construiu máquinas inovadoras com apenas uma mão. Uma dessas máquinas permitiu melhorar o rendimento e a qualidade do polimento de pedras e pingentes para candeeiros, uma das especialidades da fábrica de “Manuel do Canto”. Vítor Rodrigues não tem dúvidas em afirmar que o pai e o padrinho, José Maria Carreira de Oliveira, que fez a sua carreira como artesão do vidro na Alemanha, foram “os melhores maçariqueiros” da Marinha Grande. Não obstante, Vítor recorda-se com carinho da frase mais repetida pelo pai após o AVC. “’O meu filho é mais perfeito do que eu, mas é mais lento’. Dizia isto a toda a gente, à minha frente. No fundo, a ideia era espicaçar-me para eu o superar”, revela, esboçando um sorriso. “Manuel do Canto” faleceu aos 69 anos, deixando um legado que permanece bem vivo na obra e na memória do seu filho.

Apesar da paixão por trabalhar o vidro, Vítor Rodrigues teve de conciliar o trabalho como artesão com outras atividades profissionais durante muitos anos. “Trabalhei numa fábrica de caixas de cartão e em outras fábricas que nada tinham a ver com o vidro. Até cheguei a trabalhar num cemitério durante uns tempos. Também trabalhei 6 anos na fábrica Vilabo - Vidros de Laboratório Lda. Apesar de ser com vidro, era um trabalho totalmente diferente deste”, diz o artesão.

A inauguração do Museu do Vidro, na Marinha Grande, em dezembro de 1998, marcou a passagem de Vítor Rodrigues para artesão do vidro a tempo inteiro. A convite da Câmara Municipal da Marinha Grande, tornou-se um dos maçariqueiros do Museu do Vidro, função que ocupou durante vários anos. Acompanhado por um lapidário, o artífice que lapida o vidro, Vítor fez inúmeras demonstrações de trabalho artesanal em vidro, ao mesmo tempo que vendia as peças criadas por si. Durante este período, esteve presente numa feira na Alemanha, a convite de um empresário português emigrado no país, onde fez peças em vidro ao longo de um mês. Quando tinha cerca de 50 anos, tal como sucedera ao pai, foi vítima de um AVC, que o deixou sem ver de um olho e, uns anos mais tarde, foi sujeito a uma cirurgia ao cérebro, que também deixou sequelas graves. “Foi há 7 anos. Deixei de saber ler, deixei de saber os nomes dos meus amigos. Esqueço-me do que digo e sou capaz de repetir a mesma coisa várias vezes à mesma pessoa. A minha mulher está sempre a dizer: ‘Já disseste isso’. Mas o mais curioso é que, em relação à minha arte, não me esqueci de nada. Na verdade, cada vez trabalho melhor”, confessa Vítor, enquanto liga o maçarico.

Após as operações a que foi sujeito, deixou de trabalhar no Museu do Vidro, mas não deixou de fazer aquilo que melhor sabe. Na sua oficina, no número 10c da Rua Joaquim Domingues, na Marinha Grande, Vítor Rodrigues transforma, todos os dias, pedaços de vidro maciço em obras de arte. Independentemente do dia, a primeira peça é sempre um peixe. “Adoro peixes. Gosto de movimentar as cores e dar-lhes aqueles tons vivos. Além de ser o meu signo, é uma peça que gosto muito de fazer”, diz o artesão, que também cria outras figuras de animais em vidro. Elefantes, ratos, cisnes, tartarugas, golfinhos e galinhas são apenas algumas das peças zoomórficas criadas por Vítor Rodrigues. Por vezes, os animais ganham formas insólitas e inesperadas. “São coisas que me passam pela cabeça. Por exemplo, nesta peça, o peixe deste lado é azul e do outro lado é verde. É uma peça toda feita do mesmo vidro. Fazer um peixe, com o outro já acabado, é uma dificuldade enorme”, explica Vítor, visivelmente orgulhoso das suas “peças malucas”. O palhaço, uma peça que o seu pai já fazia, é outra das suas obras mais emblemáticas. “É uma peça que mais ninguém faz a maçarico em Portugal”, diz, com convicção. Quando as peças não são da sua autoria, como é o caso dos rebuçados, Vítor não tem problemas em admiti-lo: “Este modelo veio da ilha de Murano. Achei-o tão bonito que comecei a fazê-lo cá”. 

Fiel aos seus princípios, o artesão do vidro nunca trabalhou com moldes, não trabalha com vidro oco, pois não lhe permite “meter cores dentro”, e recusa-se a pintar as suas peças, visto que seria “um insulto ao vidro”. A forma como trabalha as cores vibrantes é uma das imagens de marca de Vítor Rodrigues. “Tanto posso meter a cor por fora como por dentro do vidro. Vou aquecer esta vareta de vidro amarelo e vou encostá-la ao vidro, que tem de estar menos quente que a vareta. Desta forma, o amarelo vai ficar dentro do vidro. Para fazer isto, é preciso saber muito bem a temperatura a que estão os dois vidros. Consigo perceber isso só de olhar para os vidros”, diz, acrescentando que “depois é uma questão de trabalhos manuais”. No caso de Vítor Rodrigues, sem ver de um olho, os trabalhos manuais requerem  uma mestria especial. “Quando estou a trabalhar ao maçarico, só vejo uma mão. A outra não vejo, mas através do calor, sei sempre quando preciso de a afastar. Caso contrário, queimava-me logo, e uma queimadura destas, a cerca de 1000 graus, faz mossa”, diz, arregaçando a manga da camisa para mostrar a enorme cicatriz de uma queimadura de infância, feita por um maçarico. 

Se, em tempos, Vítor Rodrigues participou em inúmeras feiras nacionais, a convite da Câmara Municipal da Marinha Grande, bem como em muitos programas televisivos, hoje apenas faz demonstrações de trabalho artesanal em vidro a quem visita a sua oficina. Num espaço impecavelmente limpo e arrumado, com dezenas de caixas repletas de peças de vidro feitas por si, o artesão não dá sinais de querer abrandar. Com o à-vontade de quem toda a vida trabalhou o vidro, Vítor Rodrigues coloca os óculos de maçariqueiro e senta-se para esculpir no fogo a primeira peça do dia: um peixe.

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Alfredo Poeiras