Alfredo Poeiras

“Na Marinha Grande, quem não sopra, já soprou”. A frase, que é uma espécie de ditado popular local, reflete de forma elucidativa a profunda ligação dos marinhenses à indústria vidreira. O grande impulsionador da indústria que fez da Marinha Grande a capital do vidro foi o industrial inglês Guilherme Stephens. “O pai da Marinha Grande”, como também é conhecido, tinha 38 anos quando, a convite do Marquês de Pombal, aceitou o desafio de reativar a Real Fábrica de Vidros, a qual havia fechado em 1767. Em julho de 1769, D. José I assinou o decreto que autorizou a reabertura da fábrica, passando então a chamar-se Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande. Dispondo de condições privilegiadas, como o usufruto da madeira do Pinhal de Leiria, também conhecido como Pinhal do Rei, para colocar os fornos a produzir, Guilherme Stephens recuperou e revitalizou a indústria vidreira da Marinha Grande, transformando-a numa das mais importantes manufaturas portuguesas. Ao mesmo tempo que modernizou os processos de fabricação do vidro, o inglês fez questão que os operários tivessem acesso à educação e à cultura. Construiu uma escola e promoveu a música e o teatro entre os seus trabalhadores. Exemplo disso é o Teatro Stephens que, ainda hoje, constitui um dos principais polos culturais da Marinha Grande. Após a morte de Guilherme Stephens, em 1803, a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande passou a ser administrada pelo seu irmão mais novo, João Diogo Stephens. Com a morte deste, em 1826, a fábrica passou, por testamento, para a posse do Estado português. Não obstante, o legado de Guilherme Stephens manteve-se vivo na Marinha Grande, onde a indústria vidreira chegou a empregar mais de 4000 pessoas, em mais de 20 fábricas de produção manual de vidro. Atualmente, todas as fábricas de vidro existentes na Marinha Grande estão automatizadas e os mestres vidreiros são uma “espécie” em vias de extinção. Entre os que estão vivos, apenas um se mantém em atividade. O seu nome é Alfredo Poeiras e trabalha o vidro há 60 anos.

Natural de Couço, uma vila do concelho de Coruche, Alfredo mudou-se com a mãe para a Marinha Grande, por influência de familiares que ali residiam, após os pais se terem separado. Chegado à capital do vidro, prestes a completar 11 anos, começou de imediato a trabalhar na indústria vidreira. “A prenda por ter feito a 4ª classe foi começar a trabalhar”, diz Alfredo, sem amargura. “Comecei como aprendiz, a levar acima”, diz, acrescentando: “Na altura, estavam a lançar o detergente Omo e havia uma promoção que oferecia copos, com duas ou três cores. Era eu que os levava para a arca de recozimento e fechava o molde”. Depois de trabalhar 8 anos na Crisal, onde chegou a moldador de copos e cálices, mudou-se para a Ivima, uma prestigiada fábrica de vidro artesanal, que funcionou durante cerca de um século, na Marinha Grande. Olhando para trás, Alfredo Poeiras não tem dúvidas em afirmar que, “em termos de formação do vidreiro, a Crisal e a Ivima foram a minha grande escola de vidro”. Mais tarde, num período turbulento, em que era comum haver salários em atraso, o que levou ao encerramento de muitas fábricas do concelho, trabalhou na Marividros e na Crisvidro. Nessa época, “já estava um passo à frente. Não posso dizer que evoluí, mas também não estagnei, pois as melhores peças que apareciam para se fazer, era eu que as fazia”, conta Alfredo. A sua evolução, enquanto vidreiro, levou-o a tornar-se formador no CRISFORM, um centro de formação da indústria vidreira. “Foi no centro de formação que evoluí mais tecnicamente. Tive a possibilidade de conhecer vidreiros americanos, italianos, franceses. Eram formadores e artistas de nomeada que vinham ao centro de formação e eu bebi de todos um bocadinho”, lembra, sem esconder o orgulho por ter sido formador em técnicas de vidro soprado e modelado durante 7 anos. Em 2012, cansado da instabilidade da indústria vidreira, pediu a reforma antecipada e abriu o estúdio Poeiras Glass, juntamente com o genro, Artur Rodrigues, que tinha ficado desempregado.

Ao longo da sua carreira de vidreiro, Alfredo Poeiras teve a possibilidade de trabalhar com grandes mestres vidreiros, com quem aprendeu diferentes técnicas de trabalhar o vidro. Dois desses mestres destacam-se dos demais: Fernando Ameixa e Júlio Liberato. “Comecei a trabalhar com o Mestre Fernando Ameixa no princípio dos anos 90. Trabalhava em part-time, sem nunca parar um minuto no meu emprego. Sempre trabalhei 12 horas por dia”, diz, prosseguindo: “Aprendi a trabalhar o vidro Murano e a modelar figuras de animais, totalmente à mão, com esse mestre. Evoluí muito durante o tempo que trabalhei com ele”. Cerca de uma década depois, Alfredo Poeiras conheceu outro mestre vidreiro que o marcou profundamente. “O Mestre Júlio Liberato tinha um estúdio na Austrália e, quando vinha passar férias a Portugal, costumava visitar o Estúdio do Vidro. Tinha sempre uma crítica construtiva sobre as peças e ensinou-me outras técnicas internacionais, que não se faziam em Portugal. Foi um homem extraordinário”, diz Alfredo sobre o mestre vidreiro cuja obra está representada em coleções privadas e públicas de vários países. Seis anos após a sua morte, o Estúdio do Vidro continua a homenagear o legado de Júlio Liberato, através de peças em vidro inspiradas na sua obra. 

Quando Artur Rodrigues desafiou Alfredo Poeiras a abrir um estúdio, sabia que esse era um sonho antigo do vidreiro. “Todas as fábricas tinham dois ou três tipos que faziam peças de artesanato. No início dos anos 80, comecei a fazer peixes soprados, que ainda hoje continuo a fazer. Tínhamos meia-hora para comer e, durante esse tempo, fazia um peixe enquanto roía uma sandes. O sonho de ter o meu próprio estúdio surgiu aí, mas na altura não tinha possibilidades para tal. Só em 2012, quando já tinha 57 anos, é que consegui materializar esse sonho antigo. Sou a prova viva de que nunca é tarde para os nossos sonhos se concretizarem”, diz Alfredo Poeiras, antes de dar início a uma demonstração de trabalho em vidro artesanal.

Situada no Edifício da Resinagem, no coração da praça batizada com o nome do “pai” da Marinha Grande, Guilherme Stephens, a Poeiras Glass - Estúdio do Vidro é um espaço onde é possível ver e aprender a trabalhar o vidro de forma artesanal. Dispõe também de uma loja de venda ao público, onde são comercializadas as peças produzidas no local. No espaço, são realizados workshops, em que o Mestre Vidreiro Alfredo Poeiras partilha o seu vasto conhecimento sobre diferentes técnicas de trabalhar o vidro, onde se incluem o sopro, a modelagem, a moldagem, o casting, o fusing e o maçarico. Na Poeiras Glass, “as peças são quase todas únicas”. “Fazemo-las inteiramente modeladas com as mãos. Seguimos desenhos ou a nossa imaginação e trabalhamos o vidro a 1100 graus, com a utilização de diversas cores”, revela Alfredo Poeiras, admitindo que apenas recorrem a moldes quando o cliente pretende peças repetidas. “Trabalhei uma vida inteira com moldes, mas esse trabalho já não me seduz”, confessa o mestre vidreiro. O processo de criação das peças é meticuloso e, muitas vezes, requer a colaboração de outros vidreiros. Segundo Alfredo, algumas peças necessitam de duas a três pessoas para serem concluídas, como as garrafas com compartimentos individuais de quatro ou seis vinhos, “um ex-líbris” da Marinha Grande. O frasco do vidreiro, que já se fazia e comercializava em 1772, na Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, é outra peça histórica que pode ser encontrada à venda na Poeiras Glass - Estúdio do Vidro. Uma das especialidades da casa são as peças em doblé. “É uma técnica, com origem na Boémia, que aprendi na Ivima. Basicamente, a peça tem cor no exterior e é transparente no interior. Depois o lapidário, que trabalha connosco, é que lhe vai dar beleza, fazendo sobressair o transparente. Sei que quando parar de fazer peças em doblé, é provável que deixe de haver quem as faça em Portugal. Enquanto tiver coragem e quem me compre as peças, vou continuar a fazer garrafas e jarros com a técnica doblé”, afirma Alfredo Poeiras, ao mesmo tempo que agarra na cana do vidreiro, por onde irá soprar para dar forma à peça. Enquanto artesão do vidro, gosta especialmente de fazer figuras de animais e peças novas. “Gosto de experiências e novos desafios, como aconteceu quando me propuseram que criasse peças através da fusão de pedras vulcânicas da ilha do Pico em vidro. São experiências novas que nem todos os vidreiros podem dizer que já tiveram. As pessoas apresentam-me ideias e depois têm de estar abertas ao meu conhecimento para desenvolver os projetos”, declara o artesão. O projeto em que o nome de Alfredo Poeiras alcançou maior projeção internacional foi criado pela designer Susana Soares, para quem o mestre vidreiro fez uma peça no forno e outra a maçarico, que estiveram em exposição no MoMA, em Nova Iorque, durante dois anos. Junto às peças da designer portuguesa, constava uma placa com a inscrição: “Made by Alfredo Poeiras” [Executadas por Alfredo Poeiras].

Apesar de receber muitos turistas, especialmente no mês de agosto, bem como visitas de grupos, trata-se de “um turismo familiar, que procura peças pequenas. Daí fazermos muitas figuras de animais em miniatura, assim como flores, que continuam a ser as peças mais vendidas”, diz Alfredo. A melhor época de vendas da Poeiras Glass é o Natal, a altura em que se vendem as melhores peças. “É uma época em que trabalhamos muito para a população da Marinha Grande. Aquela história dos santos da casa não fazerem milagres, no nosso caso, é falsa. Costumo dizer que as pessoas da Marinha Grande têm vaidade em oferecer boas peças de vidro”, diz o vidreiro que, embora não seja natural da cidade, considera-se marinhense.  

A consagração de Alfredo Poeiras como vidreiro aconteceu há 14 anos, quando se tornou membro do Colégio dos Mestres Vidreiros. No diploma de 17 de janeiro de 2011, é referido: “Certifica-se que o Sr. Alfredo Poeiras,  pelo seu passado profissional, pela qualidade da obra produzida e pelo prestígio profissional alcançado, foi nesta data designado como Mestre Vidreiro, passando a ser um modelo profissional a apresentar a todos os que pretendam fazer carreira na Indústria da Cristalaria”. “Atualmente, restam apenas sete mestres vidreiros vivos neste colégio, todos da Marinha Grande, sendo que eu sou o único em atividade”, revela o membro mais novo do Colégio dos Mestres Vidreiros. Alfredo Poeiras também se orgulha do seu papel na criação do Museu do Vidro, inaugurado a 13 de dezembro de 1998, no Palácio Stephens. “Na altura da inauguração, empenhei-me e tive uma equipa a trabalhar no local. O museu também é muito meu, como pessoa e como vidreiro”, diz, destacando a importância deste espaço para “transmitir às novas gerações um pouco da história do vidro na Marinha Grande”. 

Nos dias que correm, o mestre vidreiro assume-se como “uma espécie em vias de extinção”. “Lamento muito, mas já não é um trabalho atrativo para os jovens de hoje. Perdeu-se o tempo e a oportunidade de reabilitar a indústria do vidro na Marinha Grande. O centro de formação demorou 20 anos a ser concretizado e, um ano após ser inaugurado, em setembro de 2005, as fábricas começaram a fechar todas. Os empresários convenceram-se que os baixos salários salvavam as empresas e afastaram as novas gerações do trabalho no vidro. Agora vão tarde demais, o vidro inteiramente manual tem os dias contados. Não há nenhum investidor que queira investir numa fábrica de vidro soprado, só se fosse louco, até porque não tem pessoal para trabalhar, já que têm todos a minha idade ou mais velhos”, diz em tom de lamento. Mesmo assim, Alfredo faz um apelo aos decisores políticos para que “olhem com olhos de ver para o que resta da nossa alma. Se o vidro é a alma da Marinha Grande, não a deixem morrer.”  

Prestes a completar 70 anos, Alfredo Poeiras é definitivamente um homem realizado. “Sinto-me orgulhoso do legado que penso que ainda estou a criar. Não tenho muito dinheiro, tenho quanto baste e também estou habituado a pouco. O sentimento de realização não é por aí, mas sim por aquilo que aqui está e pelo respeito que granjeei no mundo do vidro”, diz, com convicção. Apesar de considerar a perfeição um objetivo inatingível, Alfredo Poeiras vai continuar a procurá-la incessantemente, honrando sempre a alma da Marinha Grande, seja numa garrafa de seis vinhos ou na peça de vidro mais simples.

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