Miguel Nobre

No coração da região Oeste, a meio caminho entre o Atlântico e o Tejo, ergue-se a Serra de Montejunto, também apelidada de “Varanda da Estremadura” pelas vistas panorâmicas que oferece do alto dos seus 666 metros de altitude. Graças à exposição aos ventos e à importância da produção cerealífera — que, em tempos, ocupou um lugar de destaque na economia dos concelhos de Cadaval e Alenquer —, foram-se construindo inúmeros moinhos de vento ao longo dos séculos. Porém, com a mecanização da moagem, a maioria acabou por ser abandonada no século XX. Ainda assim, hoje a Serra de Montejunto orgulha-se de albergar “a maior concentração de moinhos em funcionamento na parte mais ocidental da Península Ibérica”, nas palavras de Miguel Nobre, proprietário do Moinho de Avis — não só o maior da Serra de Montejunto, mas também de todo o país.

Miguel Nobre nasceu a 10 de setembro de 1958 no Vilar, uma freguesia do município do Cadaval. Desde cedo se interessou pelo ofício do avô, moleiro de profissão. Aos 8 anos já o acompanhava na construção de mastros de moinho e, nos seus cadernos de escola, rabiscava silhuetas de moinhos — talvez um presságio do caminho que viria a trilhar. Aos 13 anos ingressou numa carpintaria, onde aprendeu a trabalhar madeiras exóticas como pau-rosa e niangon. Por volta de 1980, tornou-se carpinteiro por conta própria e, pouco depois, começou a fazer os primeiros trabalhos de restauro de moinhos.

“O que era hobby tornou-se profissão a tempo inteiro”, lembra, explicando que só hesitou em dedicar-se mais cedo por receio de não conseguir sustentar a família. Aliou os conhecimentos de carpintaria a um trabalho exaustivo de pesquisa sobre molinologia em livros e  documentos antigos, assumindo-se hoje como um verdadeiro especialista: “Faço tudo — do projeto à montagem, velas, engrenagens e estrutura de madeira.” Com cerca de 40 moinhos restaurados ou construídos por todo o país, o Moinho de Avis é a sua obra-prima. Inaugurado em 2008, foi reconstruído com rigor peça a peça, respeitando a torre original de 1810. A poucos metros, o Moinho do Direitinho — primeiro restauro de Miguel Nobre — também lhe pertence.

Em 2010, o seu trabalho valeu-lhe a carta de artesão em restauro de moinhos, atribuição inédita concedida pelo Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património. Com isso, tornou-se o primeiro — e até hoje único — artesão certificado nesta área em Portugal.

Como se não bastasse ser o maior representante de molinologia em Portugal, Miguel Nobre é também um dos grandes impulsionadores da chamada “revolução do pão”. “O pão que comemos todos os dias é feito com trigo geneticamente modificado”, declara Miguel Nobre, acrescentando que “são usados aditivos prejudiciais à saúde” durante o processo de transformação da farinha. Alguns destes aditivos visam acelerar o tempo de fermentação, o que tem contribuído para o aumento dos problemas digestivos, sendo a intolerância ao glúten o sintoma mais evidente desta mudança de hábitos alimentares. As profundas alterações na composição genética do trigo, no sentido de aumentar a produtividade, transformaram um alimento que faz parte do nosso património gastronómico e cultural. “O nosso sistema imunitário não reconhece o cereal moderno como parte da nossa dieta”, explica, culpando “os grandes lobbies” pela deriva genética.

Enfrentar o poder da agricultura industrial e dos grandes lobbies poderia parecer uma luta contra moinhos de vento, mas Miguel Nobre acreditou que era possível despertar uma nova consciência nas pessoas. Em 2004, começou a recuperar sementes tradicionais de trigo — o barbela, de baixo teor de glúten, e o preto-amarelo, herança de um moleiro amigo. Com essas duas variedades e aveia selvagem, criou a farinha “Lote do Avô”, moída em mós que “nunca moeram cereais geneticamente modificados”.

Em 2018, nasceu a marca Moinho de Avis, hoje procurada por quem faz pão de fermentação natural com trigos tradicionais. Apesar de produzir pouco face à escala mundial, Miguel valoriza sobretudo a “mudança de consciência” que acompanha o seu projeto. O moinho tornou-se não só ponto de venda mas também espaço de formação de moleiros e museu vivo de cultura tradicional. À volta, amigos reúnem-se para petiscos onde o pão — feito com a sua farinha e forno a lenha — assume o lugar de destaque.

O passo seguinte foi criar o restaurante Curral do Burro, ali ao lado, onde o cozido à portuguesa é servido dentro do pão feito no Moinho de Avis. Para isso, convidou o sobrinho, licenciado em Gestão Hoteleira, para gerir a restauração, enquanto ele se concentra no moinho. Aos fins de semana, Miguel dedica-se a receber visitantes e a transmitir o seu conhecimento, garantindo que a cultura do trigo tradicional e a molinologia continuam a fazer parte do presente e do futuro da identidade portuguesa.

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