César Pereira

A cestaria é uma das expressões mais antigas do saber-fazer tradicional português. Durante séculos, desempenhou um papel fundamental na vida rural, especialmente na agricultura, onde os cestos eram usados em atividades como a vindima e a apanha da azeitona, bem como no transporte da merenda dos trabalhadores. Quando o uso do plástico se generalizou, a função utilitária destes objetos foi-se perdendo, levando muitos artesãos a abandonar o ofício. No entanto, alguns reinventaram-se, explorando o valor decorativo e artesanal da cestaria. Hoje em dia, esta arte ancestral sobrevive graças ao esforço de cesteiros que mantêm viva a tradição, adaptando-a aos tempos modernos. Um dos rostos mais jovens desta resistência é César Pereira, que, apesar da idade, já soma mais de duas décadas de experiência na arte da cestaria, sendo o único cesteiro ativo no concelho de Loures. 

Nascido em Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa, há 35 anos, César Pereira não tem, contudo, qualquer outra ligação à capital. Foi na Chamboeira, uma aldeia do concelho de Loures, que cresceu e se fez homem, num ambiente rural que contrasta com o ritmo urbano da cidade que o viu nascer. Desde muito novo, César revelou uma forte vontade de trabalhar, fosse a ajudar o pai no talho (de que este era proprietário), fosse a acompanhar a avó nos cuidados da horta ou o avô no pastoreio das ovelhas e no processo artesanal de produção de vinho. Esse contacto precoce com o esforço manual e o saber tradicional moldou-lhe o carácter e a relação com o ofício que viria a escolher. 

A cestaria entrou na vida de César aos 12 anos, quando frequentava a Escola Básica de Bucelas. Foi lá que assistiu, pela primeira vez, a uma demonstração conduzida por Laura Paulino, ou “avó Laura”, como era carinhosamente conhecida no concelho de Loures. Com mais de seis décadas dedicadas à cestaria, foi o nome maior desta arte no concelho, deixando um legado marcante que perdura para além da sua partida, em 2024. “Achei graça aos cestos, alguns eram iguais aos que usava na vindima com o meu avô. Perguntei-lhe se me ensinava a fazer e ela concordou. Comecei a ir para a oficina dela, aos fins de semana, foi com a ‘avó Laura’ que aprendi as bases da cestaria e do empalhamento”, conta César, que guarda uma profunda gratidão pela mulher que considera a sua grande mestra na arte da cestaria. Além de lhe ensinar as bases da cestaria, transmitiu-lhe também os conhecimentos necessários para cultivar a sua própria matéria-prima. “Levou-me ao rio e mostrou-me como devia estacar as plantas”, recorda, acrescentando que, pouco tempo depois, plantou os seus primeiros pés de vime, junto ao curso da ribeira da Chamboeira. No entanto, a experiência não correu como esperava: nesse verão, a ribeira secou e as plantas acabaram por morrer por falta de água, um revés que viria a marcar a sua primeira grande aprendizagem no caminho da cestaria.

Apesar da paixão por trabalhar o vime, César Pereira nunca deixou de explorar outros caminhos, conciliando diferentes ocupações com o ofício que o cativou desde o primeiro contacto. O trabalho que exerceu durante mais tempo começou aos 16 anos, numa quinta da região, onde acumulava diferentes tarefas: montava os cavalos, limpava as boxes e tratava do gado. Uma rotina exigente, mas que reforçou o seu gosto pelo trabalho físico e pela ligação à terra. Em paralelo com o trabalho na quinta, César concluiu a formação em Eletricidade e Instalações Elétricas no Centro de Formação Profissional de Alverca, o que lhe permitiu começar a fazer alguns trabalhos pontuais na área. Pelo caminho, passou ainda pelo comércio de fruta, que vendia porta a porta ou em mercados da região, uma experiência que lhe apurou o contacto com o público. Trabalhou também numa empresa de bobinagem de motores, numa serralharia e até numa cozinha. Segundo César, em cada uma dessas funções, absorveu “como uma esponja”, acumulando saberes e experiências que considera fundamentais para a sua evolução como cesteiro. Atualmente, César trabalha numa serração, onde assiste e colabora na transformação de troncos de árvores em portas, móveis de cozinha e outras peças de carpintaria. Uma atividade que lhe tem permitido aprofundar o conhecimento sobre madeiras, mais uma competência valiosa enquanto artesão.

Com base em todas estas experiências profissionais, e em cerca de duas décadas de dedicação à cestaria, César decidiu, há três anos, dar um passo em frente e registar a sua própria marca: Cesart. O logótipo da marca espelha simbolicamente todo o processo de trabalho do artesão: da raiz à planta, passando pelas mãos — o elo entre a terra e a criação. 

Depois da primeira tentativa falhada como produtor de vime, aprendeu com os erros e ganhou conhecimento sobre as condições ideais para o cultivo. “Comecei a procurar novos sítios para plantar vime. Plantei muitos pés em Bucelas porque lá o rio nunca seca”, diz César, sublinhando que as raízes densas e entrelaçadas da planta ajudam a fixar o solo, reduzindo significativamente a erosão das margens dos rios e ribeiras. Ao longo dos anos, César também tem procurado diversificar as variedades de vime que cultiva, espalhadas por várias parcelas de terreno, de forma a garantir matéria-prima com diferentes características e qualidades para os seus trabalhos. Entre as variedades que produz, destacam-se duas de vime vermelho e uma de vime amarelo, esta última especialmente valorizada pela sua maciez, ideal para empalhamentos e para confeccionar os chamados “brincos”, os detalhes delicados que dão acabamento às peças de cestaria. 

Cerca de um mês antes do final do processo de plantação, que decorre entre fevereiro e abril, termina a colheita do vime plantado no ano anterior, a qual tem início em dezembro. A plantação faz-se com os pés de vime dispostos “à carreira”, em linhas semelhantes às das vinhas. Entre abril e junho, realiza-se o descasque do vime recém-colhido, dando origem ao vime cru, que possui um tom claro característico. A partir do início de junho, inicia-se a chamada 'decapagem do vime', que consiste na remoção dos rebentos — os chamados 'filhos' — que crescem ao longo das varas. Este procedimento, realizado quinzenalmente até ao final de setembro, permite obter varas altas e limpas, perfeitas para o fabrico de peças em vime. Com a chegada do verão, os cuidados diminuem, embora a rega se torne crucial. Para assegurar a humidade dos terrenos, essencial para o crescimento do vime, César Pereira aposta num sistema de rega gota-a-gota, que utiliza apenas nas plantações afastadas de cursos de água. Consoante o destino, o vime pode manter-se em bruto, isto é, com a casca original, necessitando de cerca de três semanas de imersão em água antes de ser trabalhado. No caso do vime cru, depois de cortado, é novamente plantado na terra e regado regularmente, ou colocado em baldes de água, que funcionam como viveiros, para que se mantenha vivo. Durante o auge da floração, entre abril e junho, a pele do vime encontra-se nas condições ideais para ser retirada, permitindo assim o seu descasque. Já o vime cozido envolve um processo mais exigente: as varas são fervidas em água durante 10 a 12 horas e posteriormente descascadas. Segue-se um período de cerca de 15 dias de exposição solar, durante o qual as varas são viradas, diariamente, adquirindo uma cor acastanhada. Por fim, o material é atado em molhos e armazenado para uso na cestaria. Embora já tenha feito algumas peças em vime cozido, o cesteiro da Chamboeira reconhece que ainda não reuniu as condições ideais para trabalhar este tipo de vime de forma mais consistente.

Na oficina de César Pereira, a tradição da cestaria revela-se em múltiplas formas e utilidades. São inúmeros os cestos que ali ganham vida, desde modelos de várias dimensões destinados a tarefas específicas, como as vindimas, até malas e cestos para piqueniques. A atividade estende-se ainda aos empalhamentos, uma técnica que César aprimorou ao longo dos anos, depois de aprender as bases com a “avó Laura”, figura marcante no seu percurso artesanal. “A minha imagem de marca como cesteiro é o ‘palhinhas’”, afirma César, referindo-se à garrafa empalhada. Outra das suas especialidades é a “cestaria bruta” — um tipo de cestaria em que o vime é trabalhado com a casca intacta, ainda verde, sem ser previamente mergulhado em água, ao contrário do vime cru ou cozido. Esta técnica exige um maior esforço físico, uma vez que o material se apresenta menos maleável, mas resulta em peças de aspeto mais rústico e robusto, como é o caso dos cestos de lareira. Nos últimos anos, César Pereira tem procurado dar uma dimensão mais contemporânea ao seu trabalho, explorando formas que se afastam da cestaria tradicional. Entre essas criações, destacam-se os jarrões e outras peças de decoração, que aliam técnicas ancestrais a uma abordagem mais experimental e estética.

Embora Laura Paulino continue a ser a sua grande referência, César Pereira faz questão de reconhecer a importância de outros mestres da cestaria com quem teve a honra de conviver e trocar experiências ao longo do seu percurso. Entre eles, destaca Mário Branco, da Malveira; os irmãos Abel e José Luís, mais conhecidos como os Cesteiros da Aveleira; Armando Inácio, do concelho de Alcobaça; e Fernando Nelas (considerado por César o melhor cesteiro da atualidade), cesteiro de Gonçalo — uma vila do concelho da Guarda conhecida como a Capital da Cestaria. Todos contribuíram, de forma distinta, para o seu crescimento enquanto artesão. Assim como, ao longo do seu percurso, procurou aprender com os melhores mestres cesteiros do país, César mostra-se hoje disponível para transmitir os seus conhecimentos a jovens que queiram aprender esta arte e dar-lhe continuidade.

Desde o início do seu percurso como cesteiro, César Pereira tem contado com o apoio incansável da sua avó Maria, hoje com 86 anos. Companheira de todas as horas, ajudou-o a esticar mangueiras nas plantações, antes mesmo de existir rega gota-a-gota, e a descascar o vime com que César foi moldando a sua arte. Mais do que apoio prático, foi uma fonte constante de ensinamentos e valores, a par do avô Abílio, já falecido, e dos pais, cujos exemplos moldaram o artesão e o homem que é hoje. Apesar da idade, a avó Maria continua a ser uma ajuda diária preciosa, sempre com a mesma dedicação e carinho.

César Pereira não nasceu numa família ligada à cestaria, nem dispunha de terrenos ou oficina para trabalhar o vime quando iniciou o seu percurso. Por isso, teve de criar tudo de raiz, à semelhança do vime que transforma nas suas peças. Ao longo dos anos, foi somando pequenas conquistas que o aproximam do sonho de viver, exclusivamente, do artesanato. A maior dessas conquistas foi a criação da marca Cesart, mas também a internacionalização dos seus produtos, que já atravessaram fronteiras e chegaram a clientes em países tão distantes como África do Sul, Suíça, Estados Unidos ou Canadá. Com “trabalho duro e fé em Deus”, César promete continuar a dar o seu melhor para aperfeiçoar a sua arte e honrar a tradição que escolheu representar.

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Nelson Luís