João Inácio
Figura ímpar da lezíria ribatejana, o campino continua a ser, ainda hoje, um símbolo incontornável desta região portuguesa. As primeiras referências a estes guardadores de gado nas margens do Tejo remontam ao século XVII, mas foi apenas no século XIX, com o surgimento das Casas Agrícolas e o consequente desenvolvimento da produção agrícola e pecuária, que se consolidou uma verdadeira classe de trabalhadores: homens profundamente conhecedores das artes do campo, a quem hoje chamamos campinos. A progressiva mecanização das tarefas agrícolas e a dureza da vida no campo têm afastado as novas gerações desta profissão, e atualmente são já poucos os que a exercem. Entre os que mantêm viva esta tradição está João Inácio, conhecido no meio taurino como “Janica”.
João Inácio representa a quarta geração de uma família de campinos. Natural de Vila Franca de Xira, nasceu há 46 anos e cresceu na Herdade da Baracha, em Samora Correia, onde o pai trabalhava como campino na Casa Oliveiras & Irmãos. “Estava sempre desejoso que a escola acabasse para vir para o campo ajudar o meu pai, montar cavalos... foi sempre o que mais gostei de fazer”, recorda João Inácio, que desde muito novo revelou uma grande aptidão para a arte da campinagem.
João Inácio tinha apenas 16 anos quando venceu a sua primeira picaria à vara larga, montado no Calceteiro — o cavalo que, dois meses depois, quase lhe custaria a vida. Estava a ajudar o pai no campo quando um touro “partiu a cerca e fugiu para junto das vacas”. Como não se tratava de um touro semental, João apressou-se a separá-lo — ou, como se diz na gíria taurina, a “apartá-lo” — do grupo. “Quando já estava na cara do touro, o cavalo tropeçou numa vala, o touro investiu e deu-lhe uma cornada. Tive sorte porque o touro nem me viu. Em vez de ficar quieto, o meu instinto foi tentar salvar o cavalo. Corri para o touro, e só depois é que me lembrei que tinha de fugir. Foi o touro a largar o cavalo e eu já a correr para uma árvore. Consegui subir e o touro ficou a marrar na árvore até o meu pai chegar com o trator”. O Calceteiro acabou por não sobreviver ao ataque. João Inácio, porém, prosseguiu o seu caminho montado noutro cavalo, o Faisão, com quem viria a protagonizar uma varada “mundialmente conhecida”. “Uma fotógrafa teve a sorte de apanhar o momento, e essa varada tem sido imagem de muitos cartazes e panfletos”, conta João, sem ponta de vaidade, apesar de ser um dos campinos mais prestigiados de Portugal. Ao longo dos anos, conquistou inúmeros prémios em provas de perícia de campinos, condução de cabrestos e picaria à vara larga. Entre os vários cavalos e éguas puro-sangue lusitano que já teve, destaca a égua Russa — com a qual conquistou muitos troféus — e o seu atual companheiro de lides: o Fiorde da Cerca.
Aos 22 anos, já com vários anos de experiência numa das mais conceituadas ganadarias do país, João Inácio decidiu abraçar um novo desafio. “Tive uma experiência em Évora, trabalhei cinco anos numa ganadaria que entretanto já não existe. Foi um projeto do Miguel Cintra, filho do Sousa Cintra, que quis comprar uma ganadaria e tornar-se ganadeiro. Mas tinha uma ideia completamente diferente da realidade. Pensava que isto dava dinheiro. Hoje, então, é ainda pior. Esta vida é mesmo só para quem tem gosto, porque é uma atividade muito dispendiosa”.
Foi essa paixão que João Inácio encontrou na ganadaria Herdeiros Dr. António Silva, perto de Coruche, onde trabalha há 19 anos. Como campino e maioral dessa ganadaria brava, “Janica” é responsável por 350 cabeças de gado, incluindo uma vacada mertolenga. “Levanto-me por volta das 7h da manhã e só volto para casa quando anoitece. Normalmente, a alimentação é feita logo pela manhã. Depois, é preciso verificar se há bezerros recém-nascidos para colocar o brinco. Há também outros afazeres, como montar e reparar as vedações. Se for dia de meter os touros a correr, monto a cavalo logo cedo para fazê-los mexer, garantindo que estejam sempre na melhor forma física para as corridas”. Entre as suas tarefas está ainda a tenta, uma lide especial para avaliar a bravura das vacas. As vacas aprovadas na prova de tenta são cobertas por um semental, que também passa por um rigoroso processo de seleção. “Para ser semental, tem de ser excecional — nem todos conseguem. Só de vez em quando aparece um realmente bom, e estamos sempre em busca do melhor”, explica João Inácio, admitindo que “os resultados nem sempre são os esperados”. “Diz-se que os touros são como os melões: só depois de abertos é que se sabe se são bons. No caso dos touros, só depois de saírem à praça e começarem a ser lidados é que sabemos do seu valor”, acrescenta. Com esta reflexão, João reconhece que, por mais criteriosa que seja a seleção — baseada na sabedoria transmitida de geração em geração — há sempre algo que escapa ao controlo do homem, e que apenas a natureza pode explicar.
A solidão dos dias passados no campo ao longo de todo o ano contrasta com os momentos festivos, em que“Janica” veste o tradicional traje de campino: barrete verde, colete encarnado, calções azuis, meias brancas e jaqueta no braço. Nesses dias, troca a quietude da lezíria pela animação das ruas das vilas e cidades do Ribatejo, onde conduz o gado. “Passo os dias no campo, tanto durante a semana como ao fim de semana. As festas e as corridas são momentos de convívio — vamos fazer a festa para os outros, tentamos dar o nosso melhor para animar o povo”, explica “Janica”, que já teve a honra de recolher, a cavalo, os touros e cabrestos das ganadarias onde trabalhou, nas mais prestigiadas praças do país. Além disso, é também o responsável pelas esperas de touros nas emblemáticas festas do Colete Encarnado, em Vila Franca de Xira, a sua terra natal. João Inácio tem um orgulho genuíno na profissão que exerce e no que esta representa para o Ribatejo. “Não me vejo a fazer outra coisa”, afirma, enquanto abre uma saca de ração para alimentar as vacas de ventre e o semental. A cultura taurina agradece — e reconhece — esse compromisso diário com a tradição.